Pela janela

Do alto da minha janela, no quinto andar, eu vejo meu vizinho preparar um cigarro de maconha com muita delicadeza. Ele mora no prédio ao lado alguns andares abaixo de onde moro. A falta de cortinas dá um tom pouco privado à vida dele — um micro big brother visto que a cama encosta na parede logo abaixo da janela, como se ajoelhado no colchão ele pudesse dobrar os braços e descansar a cabeça no batente olhando para o mundo lá fora. Ou olhando para mim aqui no alto. Todas as noites meu vizinho senta de pernas cruzadas na cama, abre o que imagino ser um estojo e distribui a erva sobre o papel com muito cuidado. Enrola, aperta, enrola novamente, passa a ponta da língua e lacra o baseado com um pouco de saliva. Acende. Eu, aqui do alto, viajo com ele.

Enquanto a maconha queima o peito do meu vizinho, lá embaixo, eu olho pela janela sem a pretensão de querer desvendá-lo; passo o olho, alterno entre o céu por vezes estrelado, a mata, os prédios; penso que a janela é o que há de mais sagrado numa casa porque é através dela que a gente pode ver o mundo sem sentirmos culpa pelo cansaço, sem o esgotamento de tudo é pesado na vida. Quando eu estou na janela, o único peso em mim recai sobre os olhos do meu vizinho — certamente mais fechados a cada trago. Ele não se preocupa em soprar a fumaça pela janela, em vez disso liberta os pulmões numa neblina que toma conta do conjugado. Meu vizinho deita e olha para o alto exatamente como os apaixonados procuram formas em nuvens que desmancham com o vento. Eu sigo viajando com ele.

Não gosto de maconha, acho que a erva fumada traz a concentração de fora para dentro, torna o centro do usuário maior que o resto das coisas e o pensamento vulnerável. Tampouco gosto do cheiro, enjoativo, por isso imagino uma atmosfera densa a do apartamento do meu vizinho, o que me faz lembrar um trecho do excelente “Cinema Orly” (1999), de Luís Capucho, escrito num talento que transcende a minha confusão de ideias. Ele diz:

“Quanto à onda que provoca o baseado, trata-se dessas experiências que se perdem no rol das coisas que são óbvias demais, simples demais, comuns demais e são inenarráveis exatamente como narrar o que sentiram Adão e Eva após comerem a maçã ou narrar uma galinha que atravessa a rua. O baseado ilumina minha imaginação. Toda imagem é surpreendente e se eu não morro de medo, fico inchado de prazer. Com o baseado percebo que mais imagino do que penso ou que o meu pensamento, o meu raciocínio, é iluminado por imagens o tempo todo. Se o meu cérebro funcionasse apenas sob o efeito de um baseado eu seria uma fogueira que arderia mais rapidamente. Não consigo entender como alguns amigos conseguem ser maconheiros. Na verdade, mesmo com aquele prazer de quando fumado, não gosto de maconha, não gosto de estar sensível, de estar percebendo. Prefiro a minha cabeça limpa, a minha cabeça sem me surpreender com o seu colorido. Também fico religioso quando fumo. Desvendo equações místicas. E sinto-me preso, como se eu tivesse uma alma realmente atada, impossibilitado de sua leveza por conta da imobilidade e peso do meu próprio corpo. E não gosto disso. Não gosto de pensar religiosamente, acho perda de tempo. Por isso fumo maconha já meio bêbado, quando o meu pensamento fica menos rígido e quebra-se com facilidade para não se prender a nenhuma ideia, nenhum pensamento mais longo ou inconsistente. Com a maconha os sentidos parecem mais longos, mais largos e o tempo mais intenso.”

Meu vizinho toda noite acende um cigarro delicadamente recheado de maconha. Eu, de um alto que não é tão alto assim, olho para ele preso em sua atmosfera densa, focado em seu próprio centro, sendo o protagonista involuntário do meu alcance. O travesseiro parece menos resistente ao peso da cabeça concentrada, livre de preocupações externas como a minha também parece estar quando eu recorro à janela. Nunca o escutei tossir, tampouco ligar música muito alta. Nossa relação, muda pela distância, desprovida de contato visual, não tem espaço para densidades maiores que a da maconha que ele tanto fuma. Um dia, porém, enquanto ele se divertia com a fumaça, me peguei pensando em como a triste trajetória da erva, no Brasil, entre plantio e pulmão, poderia ser transformada em um caminho mais eficiente em direção ao aval do Estado para uma liberdade tão banal. Banal como meu vizinho, no Catete, um rapaz que fuma às noites antes de dormir. Mas, estando na janela, não me aprofundei nos pensamentos tristes do Brasil, por que é da janela que eu viajo com o céu por vezes estrelado, com os prédios ou meu vizinho. Não posso ser denso na janela, não quero.

Ontem à noite, o rapaz sentou na cama de pernas cruzadas e pôs-se a despedaçar a maconha-concreto que desce os morros no Rio de Janeiro, seca em lajes – diz-se até que banhada em mijo. Levou o baseado à boca e fumou deitado. Eu fui viajando pela janela, concentrado em tudo que não sou eu, ao contrário de meu vizinho – sempre focado em seu centro. Fomos juntos nessa onda muito doida que é a dele, muito parecida com a minha, cujo combustível não é a maconha e nem poderia ser porque não me interessa entrar ainda mais dentro de mim; eu preciso sair, virar o avesso, viajar no outro, nele e em mais um monte de gente. A neblina no quarto, lá embaixo, ficava mais densa. Eu o observei até que meu estômago desse sinal de vida – coisa que certamente aconteceria com ele dali a algum tempo. Ao voltar à janela, depois de jantar, vi que o rapaz já estava dormindo, sua privacidade escancarada e o quarto completamente iluminado. Não sei se ele teve tempo de guardar a ponta do baseado. Meu vizinho, às noites, como eu, parece estar muito cansado. Para lidar com isso tudo, nós, eu e ele, seguimos viajando.

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