A tensão que ninguém vê

Alexandre Rufião fitava Wilsin com apetite nos olhos – fome de uma vida toda. Com o pretexto de levar Pretão para passear, encoleirava o labrador e descia os três lances de escada do prédio em direção ao boteco na esquina da Andrade. Mantinha cantinho cativo, apoiava as costas contra a parede e descansava o chope na única mesa alta do lado de fora do bar, daquelas que pedem cadeiras igualmente altas e desconfortáveis. Rufião nunca sentava. Chope atrás de chope, o cão deitado não parecia se incomodar.

Às 20h, Wilsin largava o serviço no boteco e sentava à mesa logo à frente esperando carona do irmão que sempre tardava em chegar. Tomava umas geladas, tudo por conta do patrão, seu Zé, gente boníssima. Wilsin, Wilson de Sousa Neto, chegou da Paraíba depois de três anos no serviço militar. Aqui conseguiu emprego e namoradinha, Danielle, grávida de cinco meses. O moleque, tão moleque, já estava pronto para ser pai. Rufião, discreto, encarava o jovem descolado, de risada frouxa, chinelo nos pés e boné vazando da cabeça. Não continha o gelo na barriga e os latejos por dentro da bermuda larga quando trocavam olhares – apertava a coleira como num alívio. Bastava avistar o garçom fora do batente pra se sentir moleque novamente, logo ele, Alexandre Rufião, casado há 26 anos e pais de duas meninas. A mais nova, aos 22, batia fácil idade com Wilsin.

O jovem não era bobo, estava ligado nos cortejos invisíveis do coroa. Retribuia sorriso manso, escapava o rabo de olho na direção de Rufião. Ninguém percebia nada. Largava o chinelo e subia um dos pés à beirinha da cadeira baixa, abraçava a perna com o braço magro e mexia nos dedos como para tirar ponta de unha – momento ideal para mandar olhar cabisbaixo e tentação de canto de boca. Por vezes levantava e avançava em direção a Rufião, passava as mãos na pelúcia de Pretão numa proximidade que o homem desconcertava, a testa molhava de suor.

– Ele é manso pra caramba né? – É, já tá velho. Tá velho, né, Pretão?

Rufião virava o copo pedindo por mais chope gelado.

Dia após dia, por mais de um ano, lá estava Rufião na esquina da Andrade, em pé, na companhia de Pretão; a barriga inchada de chope. Wilsin se fazia de bobo, curtia um papo com os outros garçons que ainda estavam de serviço, levantava, espreguiçava – Rufião enlouquecia – mandava zap para Danielle, chamava os companheiros pra ver a tela do celular, caia na risada. Vez em quando ligava a atenção no coroa, desviava, achava graça, chegou um dia a morder os lábios, Rufião corou sem conseguir manter olhar fixo. Dava em nada, até uma quinta-feira não tão qualquer, quando o coroa chegou ao boteco pontualmente às 20h na ânsia de ver Wilsin. Foi pego de surpresa, ouviu que o jovem pediu as contas e voltou para a Paraíba, ganhou puxadinho para morar com Danielle. Foi como um soco forte. Encerrou o chope, levantou a voz e gritou por uma branquinha.

– O que é isso, seu Rufião? O senhor bebendo cachaça? – respondeu seu Zé, pronto para caprichar na dose.

Rufião e Pretão não voltaram para casa naquela noite.

Dez minutos de atenção

Lá pelas tantas, matando as saudades, depois da gelada com os homens que vez em quando se arriscam numa fezinha, encontrei um dos maiores vilões do Catete. Nos abraçamos, mais até do que eu gostaria, ele questionou meu paradeiro e disse que nunca mais havia me visto por aquelas bandas. Eu me adiantei dizendo que estava de folga, passei um tempo fora para sentir falta daquilo tudo, mas estava de volta; não largo o osso, tá ligado? Elogiou minha camiseta, perguntou se eu não arranjava uma para ele matar no peito, fim de ano, sabe como é, fica tudo mais difícil com pouco bico. Me pediu um cigarro, disse que gosta de mim porque não olho ninguém de cima para baixo. Dei dois.

Enquanto ele baforava a fumaça – já com um dos cigarros acomodado na orelha, outro dos vilões passou por nós dando uma encarada. Trocaram olhares – não devem se bicar. O cara é daqueles que prestam serviço da alçada do Estado, já que a onda aqui é privatização a la brasileira. Ele cuida da área, afasta as ratazanas, tem meu respeito, homem sério cuja cara já faz borrar as calças de quem pensa em cometer pequeno delito. Diz que anda armado. Seguiu seu caminho no balançar da corrente dourada enrolada no punho.

Eu e meu parceiro continuamos matando as saudades, perguntou se eu estava precisando de algum serviço, coisa de pintura, pequeno reparo. Percebi que estava mais magro; respondi que não, mas caso soubesse de algo avisaria. O papo fluiu como sempre fluiu, eu, desinteressado, ele falando sem parar, conexão olho a olho, sem desvio. Eu me afastava um pouco numa tentativa de desviar os pingos de saliva que voavam em minha direção, um acertou o canto do meu lábio em cheio, que merda! Tava na hora de seguir para casa. Disse que precisava ir embora, já estava tarde e o dia seguinte começava cedo. Apertamos as mãos, mais um abraço demorado, ele precisava de um banho, de roupas limpas. Se despediu feliz por saber que vamos voltar a nos esbarrar mais vezes, vai filar cigarro, quem sabe um pouquinho da cerveja, dez minutos de atenção, como sempre. Sem saber exatamente o porquê, eu também estava feliz por ter certeza que vamos sempre nos ver por aí.

Pintos na sacola

Rec rec rec. O velho girava os pinos de plástico com os dedos enrugados, e os pintinhos efervesciam no chão. De pulinho em pulinho os brinquedos de corda, tão vagabundos, disparavam aleatórios até que cessassem o movimento, dispersos. Raramente paravam em pé; não poderiam ser fabricados em lugar do mundo que não a China. Taiwan, talvez. O trabalho era ingrato tanto para os chineses – eu pensava – quanto para o velho vendedor na porta da galeria Condor, no Largo do Machado. Já em idade avançada, era daqueles velhos que a gente olha e lamenta a labuta. E que labuta! O homem, curvado, abaixava de minuto em minuto para dar corda novamente nos plumadinhos amarelos, tão desajeitados, feiosos. Alguém compraria pintinhos de dar corda? Rec rec rec, o velho dava corda abaixado, apoiava as mãos no joelho e voltava a oferecer a quem passava, como num martírio de pagador de promessas. No braço uma sacola – decerto um galinheiro inteiro. No outro, cartela de remédios e receita do SUS. Através das lentes profundas dos óculos o homem parecia ter a idade muito mais avançada do que aparentava distante. A pele murcha muito branca trazia à tona o verde das veias no rosto, e os pontos brancos de barba mal feita, branco-neve, eram mais espessos que os poucos fios restantes na lateral da cabeça. Poucos dentes também sobravam na boca do velho. As pessoas passavam para lá e para cá como se o velho fosse tão invisível quanto os pintinhos são para o mundo.

A mulher de cabelos loiros passou apressada.
O mendigo mordeu um pedaço de pão.
O jovem espirrou.
O homem falava ao celular.
A criança precisou de colo.
A velha comia kibe.
O trocador de ônibus correu.
Os adolescentes não pegaram o panfleto.
Amarrado ao poste, o cão implorava pela dona na porta da farmácia.

Rec rec rec, os pintinhos pulavam até cair.