Aniversário, que loucura

Passei pelos vendedores de memórias que enfeitam e conturbam o caminho entre a Glória e a Lapa. São homens e mulheres que dispõem objetos sem alma em panos encardidos na calçada, aparentemente sem valor algum, objetos sujos, usados, mortos. Telas indiscutivelmente mal pintadas, trecos, louça. Bonecas assustadas, potes de cosméticos, peças eletrônicas, molduras de um passado que não pertenceu aos vendedores de aparência anestesiada – alguns transpiram malandragem. Eu caminhava do Catete até desembocar na Rua da Lapa, onde estão concentrados esses homens e mulheres, pensando dentro de minha própria bolha, ruminando as dúvidas de quem assiste de longe ao mercado de memórias impertinentes. Poucas vezes vi alguém demonstrar interesse por algum objeto – não ousaria chamá-los de produto, um ou outro jovem em corpo de velho buscando saber o preço de um livro de carcaça ainda mais velha. Não custaria mais de três reais, imagino. Olhei de relance para a capa de um DVD da Diana Krall, ao vivo em Paris; é tudo tão estranho, sapatos que não formam par, calcinha de criança, tufo de peruca. Fico intrigado, mas não o suficiente para interromper o percurso, diminuo o ritmo, no entanto.

Vou diminuir o ritmo:

É sábado, meu aniversário, exatamente quando eu nasci, só que 27 anos depois. Sigo caminhando até a Rua da Lapa para resolver o que tenho a resolver. No caminho, vejo os objetos organizados à própria sorte no chão onde piso, onde as travestis pisam, ondes os homens passam afrouxando a gravata, onde o velho escarra, onde a moradora de rua senta para amamentar. Preciso controlar o ritmo. Um dos vendedores resplandece ao sol, deitado, a cabeça apoiada numa trouxa, ele lê um livro concentrado, o corpo sem camisa resiste ao calor, não derrete. Os ‘produtos’ estão lá. De onde teriam vindo? Será que alguém sente saudades de algum daqueles objetos? Daquele velho camafeu, talvez? Seria ele lembrança de uma avó doente? De uma mãe igualmente morta? Uma relíquia desgostosa de um casamento ingrato? Bodas de prata? Eu sinto saudades. Hoje, completo 27 anos e tenho saudades das coisas que não existem, que não tiveram alma, que carecem de alma como todos aqueles objetos. As saudades das quais me refiro não tratam do passado. Este, por mais que fisgue o peito de tempos em tempos, está bem acomodado nos momentos sem retorno, está lá, no lugar das coisas que não são eternas. Eu falo que tenho saudades das coisas que escolhi não viver, de tudo que poderia ter acontecido e não aconteceu. Essas saudades, das quais estou me repetindo, por favor, não confundam com arrependimentos – deste mal não sofro. Digo que, infelizmente, é inevitável pensar nas pessoas que eu poderia ter conhecido, nos efeitos das mensagens que eu poderia ter enviado, nos outros ofícios dos quais eu poderia ter feito dinheiro, nos olhos que eu deixei de olhar nestes 27 anos, nos nãos. É inevitável – e não é ruim, mesmo que um pouco melancólico. Os objetos, no entanto, diferentemente das minhas saudades, tiveram um passado, já saborearam o gosto de ter alma. Têm muito mais forma. Não têm passado as saudades do que não aconteceu.

Sim, eu sei que ainda sou jovem. Preciso diminuir o ritmo e as vírgulas, deixar tudo mais fluido.

Tento me livrar das pretensões de sábado, tarefa muito difícil. Os sábados, sempre pretensiosos dentro de minha cabeça, são os dias nos quais tento seguir a mesma rotina quando dou sorte de não trabalhar – nada mais terrível do que trabalhar aos sábados. Acordo cedo; sempre acordo cedo para ter a noção de que o sábado é longo e poderoso. Tomo café da manhã em alguma padaria e volto imediatamente para casa, quero descansar às luzes claras, curtir esparramado no sofá, pés pendendo pelos braços macios sem encostar no chão. Isso até a hora do almoço, quando o alvoroço do estômago me conduz ao restaurante. Descanso até umas 18 horas, até começar a segunda parte do meu dia. Se é um sábado chuvoso, vou à academia. Um sábado soberano, como devem ser todos os sábados, ando de bicicleta ou corro no Aterro, sempre no Aterro – energizo-me. Sob o horário de verão, atraso para às 19. Depois disso, retorno e começo a me preparar mentalmente para a terceira parte, a madrugada, pretensiosa e longa, larga, com ar pesado de encher pulmões ansiosos. Os sábados, sim, são maldosos como falam das sextas-feiras.

Quebrei a rotina, ainda era bem cedo quando eu caminhava até a Rua da Lapa.

Os objetos mortos estavam por toda parte, eu só precisava resolver o que tinha a ser resolvido, trajeto curto entre o Catete e a Lapa, porém, no meio do caminho, me vi perdido num cemitério de objetos mortos sob os olhares displicentes de seus homens e mulheres, seus donos mortos, dinheiro para fazer uma fezinha, se embebedar, vestir a criança com fralda, pagar por sexo. Ainda preciso diminuir o ritmo. Escolho parar. Finjo interesse, olho para as tranqueiras – visão de raio-x. É meu aniversário, que loucura, 27 anos, é muito cedo, estou olhando para porcarias organizadas no chão da Rua da Lapa. Penso em comprar alguma coisa. Ao lado, um cão tenta se aproveitar da doçura de uma cadela, ela o coloca em seu devido lugar, rosna, ele cai fora. Penso na Elza Soares e acho graça. Um vendedor se aproxima, o que estava deitado em berço esplêndido, ele não derrete ao sol do sábado.

– E aí, irmão, vai querer alguma coisa?
– Tô olhando, obrigado.

Eu parei, mas não consigo diminuir o ritmo, estão percebendo? Vou tentar mais uma vez:

É meu aniversário, completo 27 anos neste sábado de 25 horas de vida. Ainda não corri no Aterro como faço diariamente, mas sinto-me energizado. Os objetos mortos à minha frente não têm energia, mas são inofensivos, mortos. Repetição. Estou cheio de vida. Pergunto quanto custa um dos objetos: 10 R$. Compro por R$ 5. Fechado. Dou alma àquele objeto. Ele é meu, não está mais morto. Volto para casa.

É a última:

Sigo meu percurso de volta para casa, eu e meu objeto, não estou sozinho. Vou pensando no que eu gostaria para um novo ano, o que seria bom que acontecesse neste caminho aos 28. Uma velha me pede as horas. Eu respondo feliz porque, como todos sabem, eu adoro as velhas e elas me adoram. Continuo. Neste novo ano, eu me desafio a dar mais vida às coisas mortas, quero dar menos espaço para as saudades descritas ali em cima. Eu e meus irmãos, alguns de vocês, os que já conquistei, quero estar junto, dizer menos nãos. Deixar as coisas fluírem, conhecer o lado bom – e só o lado bom – da complacência. Quero dar vida às coisas mortas, vocês (e as corridas no Aterro) me dão energia de sobra para isso. Quero dar vida às coisas prematuras, pré-uterinas, mortas. Que loucura.