Stalker, assim, do dia a dia

As pessoas seguiam concentradas em seus próprios ritos de normalidade. O homem com microfone na porta da loja de utilidades anunciava bolsas da moda para “conservar sua marmita com elegância”. Ele repetia: “para conservar sua marmita com elegância”. Ele repetia. Custavam 12 reais. O menino da banca de jornais sorria seu sorriso generoso e a moça entregava panfletos de comprador de ouro, as unhas imensas e coloridas, desenhadas com muito esmero. A nova filial das Casas Pedro era sucesso; a Rua do Catete estreitava-se em camelôs, coisas vagabundas inutilizavam as calçadas dando cor e movimento ao chão. Na porta da loja de doces, um menino pedia para que lhe comprassem uma caixa de paçocas. Maio estava acabando em seu devido tempo e tudo estava posto em seu devido lugar. Quase tudo.

Faz dois anos, Rafaela.
ou Larissa,
Júlia
ou Marquinho ou Thiago,
Luisa, Renata, Marcelo, Gustavo, Guilherme, Mariana ou Gabriela,
Luiz Felipe,

Escrevo sobre aquele dia do qual você provavelmente nunca vai lembrar. Eu me lembro muito bem. As pessoas seguiam concentradas em seus próprios ritos de normalidade. Menos eu. Tocava “Nine out of ten”, do Caetano, na banca de jornais. O menino sorria generoso enquanto lhe dava o troco das revistas que você havia escolhido. Você ainda compra revistas? Dois anos são suficientes para estremecer qualquer mercado editorial. Eu estava logo atrás de você, sorte a minha ter decidido comprar cigarros naquele exato momento – te descobrir me fez sentir alive, vivo, vivo, muito vivo. Você saiu da banca sem me perceber e eu já pensava em nós dividindo o sofá para discutir os assuntos das revistas; falaríamos sobre política, debateríamos a Veja ou a Piauí ou a Ana Maria, cruzaríamos as palavras com caneta Bic – ou lápis, caso você preferisse. Eu te segui até você entrar nas Casas Pedro. Vi que você esbarrou na moça que entregava panfletos de comprador de ouro e se desculpou muito gentil, sorriso não tão sincero quanto o do menino da banca, mas um sorriso só seu. Comprou temperos a granel, creme de leite fresco, uma caixa de suco de uva e pão sírio. Foi para casa, eu te segui até o seu portão.

Eu quis tanto conversar com você, Rafaela.
Ou Gaia,
Alice ou Bernardo ou Joaquim,
Flávia, Bárbara, Bruno Rodrigo, Eduardo, Carolina ou Viviane,
Henrique,

Lembrei também daquilo tudo que nunca aconteceu depois daquele dia que só eu lembro. Daquela vez que estávamos brigados e você não me avisou que eu estava com uma meleca presa no bigode na festa da Mayra. Lembrei também de você dizendo que pasta de dente tem que ser branca, senão não limpa direito. Quando você me traiu no Vietnã e eu te trai em Macaé, e quando nós dois nos perdoamos. Quando você me abraçou no dia em que meu cachorro morreu e quando nós ficamos perdidos em Luxemburgo. Lembrei que eu comprava seu chocolate preferido e que você me deu um pote mofado de whey protein que comprou na OLX. A gente riu tanto nesse dia. Tudo veio assim, de repente, na minha cabeça. Como quando a gente perdeu a aposta para o Luciano e a Maísa e tivemos que entrar no clube Bogari. Você não se lembra, mas eu já sinto saudades.