Quando Lúcio tombou morto na nossa frente, perplexos, levamos tempo para entender a imprevisibilidade da morte. Lúcio caiu como uma árvore serrada na base, sequer dobrou os joelhos. Valia tão pouco, diferentemente da madeira reencarnada em armários e mesas e cadeiras que ele nunca teve, que talvez por isso nenhum de nós tenha tocado-lhe o corpo num primeiro instante. Estávamos bêbados sentados no gramado da praça como fazem os adolescentes nas praças. Lúcio estava bêbado como escapam alguns de uma vida que insiste em ser muito difícil, guardava carros no Centro da cidade. Vestindo apenas bermuda e chinelo, magro e sujo no auge de seus 20 anos de idade, intrometeu-se na nossa roda de amigos e perguntou se algum de nós ousava duvidar de sua aptidão para beber. Tinha malemolência na voz, falava sorrindo, sorriso torto, muita simpatia. Disse que tomaria a metade restante da nossa garrafa de vodca de uma só vez, como num gole rápido. Já estava visivelmente bêbado. Trêbado. Alguns duvidaram, não era possível. Outros se negaram a dividir a bebida com ele. Entre nós, sentados, ouvi sussurros de quem se incomodava com a presença de Lúcio, parado ali, em pé, sem nada a oferecer. Outros, com os quais eu mais me identificava, o encorajaram a cumprir a promessa. Vira! Vira! Vira! Com o consentimento de alguns amigos, meus cúmplices, entreguei-lhe a garrafa numa sentença de morte, e ele não hesitou em entorná-la garganta a dentro. O líquido relutou em aceitar o destino de algoz tentando escapar desesperado pelos cantos dos lábios em direção à pouca barba de Lúcio. Como rios que abrem caminhos, parte do líquido escorria brilhante pelo seu pescoço, corria rápido para o peito e parava. Todo resto foi direto para o estômago do flanelinha. Dito e feito. Sem cara feia, ao contrário de nós, Lúcio enxugou a boca com o antebraço tatuado: Maria, estava escrito. Ele chacoalhou a cabeça e sorriu. Gosto de pensar que sorriu para mim. Tinha um sorriso bonito apesar de faltar-lhe um dente ao fundo da boca. Eu não tive tempo de retribuir. Deixando a garrafa vazia escapar de sua mão, deu um passo para trás e caiu de costas no gramado com a expressão serena de quem nunca teve a chance de experimentar o pavor das reflexões mais profundas sobre a morte.
Naquela madrugada, há mais de dez anos, meus amigos e eu levantamos assustados e ligamos para a emergência. Na praça, ninguém além de nós. Já passava das duas da manhã. Fui o primeiro a tentar acordá-lo, não lembro de medir sua pulsação ou verificar se ainda estava respirando. Bati repetidamente no rosto pálido, massageei o peito e cheguei a levantar suas pernas na esperança de que um fluxo mágico de sangue pudesse corar Lúcio, dando-lhe uma segunda chance. Pensei em enfiar algo salgado entre seus lábios para fazer levantar a pressão que deveria estar igualmente derrubada. Ninguém tinha nada para comer. Eu já havia desmaiado por causa de alguns excessos, mas sentia que aquela situação estava além do que nós, adolescentes bêbados de praça, havíamos vivenciado antes. Dois dos meus amigos foram embora apressados. Não deveríamos estar largados ao deserto de uma madrugada fria. Que encrenca. Lúcio também estava frio. Voltei ao chão e levei sua cabeça ao meu colo numa espera eterna pela ambulância. Tinha os cabelos negros cacheados e maltratados. As lembranças da delegacia, da minha mãe acordada chorando, gritando comigo, dos meses subsequentes em que a morte de Lúcio assombrou a mim e meus amigos não são muito claras na minha cabeça. Não sei ao certo até que ponto toda a narrativa dos dias seguintes àquele momento foram alteradas pelas emoções confusas de um passado que sempre retornou angustiado.
Meu primeiro encontro com a morte aconteceu pouco mais de dois anos antes de Lúcio morrer, quando minha avó escorregou no banheiro e bateu a cabeça na bancada da pia. Ela tinha 80 anos e morava com meus tios em um apartamento amplo, perto da praça onde matei Lúcio. Desde que o diabetes começou a ceifá-la lentamente, minha avó era cuidada por uma senhora apenas uns cinco anos mais jovem, o que sempre me incomodou. Como uma velha poderia cuidar de outra velha? Eu comentava com minha mãe que Vera não daria conta de fazer companhia e dar os remédios a outra velha, ainda mais velha que ela, mas minha mãe sempre dizia que eu não deveria me meter na vida dos meus tios. Eram eles que pagavam o salário de Vera, e, na cabeça de minha mãe, se era assim é porque Vera havia de ser uma boa cuidadora. Além disso, minha mãe tinha pouca afeição pela minha avó, mãe do meu pai. Enquanto foram casados, a velha vivia a resmungar pelos cantos dizendo que minha mãe afastava os netos da família. Nunca procurei entender isso.
Numa noite qualquer, Vera foi vencida por um sono pesado e minha avó, cheia de limitações de velha, levantou-se da cama alta em direção ao banheiro. Foi Vera que, no dia seguinte, fez questão de limpar o sangue no piso. Eu lembro de ter ido à casa dos meus tios e encontrá-la desesperada, mais velha do que o normal, chorando e passando pano no chão. Meus tios tentavam em vão levantá-la, que só esfregava e chorava e esfregava e chorava. Meu pai não estava presente. Ninguém o via há uns cinco ou seis anos. No velório, minha avó estava inchada, coberta de flores brancas e amarelas. Além da falta de vida, um véu fino a separava de nós. Eu não lembro da expressão da minha avó, morta, como lembro da de Lúcio, sereno, tranquilo. Na semana seguinte, meus tios me deram um pingente de santa Rita de Cássia que minha avó guardava na gaveta do criado mudo. Não tinha herança a ser distribuída entre a família, ganhava uma pensão medíocre deixado pelo meu avô, sujeito que nem cheguei a conhecer. Ela vivia às custas dos meus tios. Eu não esperava nada, não queria nada. Apenas guardei o pingente no fundo da minha gaveta, desta vez do meu criado mudo, como um respeito pela religiosidade de minha avó.
Continua…