Sempre quando ouço alguém falar do “Norte”, assim, na trivialidade do comércio carioca, desconfio de que a referida região seja, na realidade, o Nordeste. Minha avó, nascida em Pernambuco, comete o mesmo erro geográfico – ou tem o mesmo costume nordestino (seria nortista?). Acho curioso.
Enquanto registrava meus pacotes de cotonetes, a atendente do caixa da farmácia reclamava irritada da operadora de celular, dizia que o bônus concedido mensalmente, do qual ela desconfiava não ser realmente gratuito, de nada lhe adiantava já que não permitia ligações para o Norte. Eu estava em silêncio, meus pensamentos completamente de acordo com as reclamações da moça; ela muito pertinente, resmungava à colega no compasso de bip-bips do leitor de código de barras. Não era daquelas farmácias que o cliente precisa registrar os produtos numa cesta numerada antes de seguir para o caixa, tampouco solicitar a atendente para pegar na vitrine trancada os produtos mais caros, como cosméticos, cremes para espinha, lubrificantes, protetor solar. Não gosto desse formato de loja.
Eu não usava cotonetes há um dia, algo impensável para mim. Me parece que o uso diário não é hábito saudável, mas não me importo. Só deixo de usá-los diariamente quando tiver esfregada na minha cara a fatalidade comprovada das tais hastes flexíveis. Talvez nem assim. Caso o pior aconteça, aos amigos mais próximos, peço que registrem na minha lápide: “morreu de cotonetes, faria tudo outra vez”. Agora que não fumo mais, que caminho a passos mais lentos para o fim da coisa toda, sinto-me mais aliviado em cravar as pontas de algodão no ouvido. O que seria do ser humano sem vícios, sem hábito destrutivo? Tão nojento é quando alguém senta próximo a mim, de perfil, e uma nesga de cera fica visível a olho nu, emergindo do buraco negro por onde passa o som. Imagino a namorada dando um beijo no pescoço, um cheiro, subindo carinhosa até o ouvido e… ingrata surpresa. Me embrulha o estômago.
A atendente seguia reclamando da operadora de celular nestes segundos que o texto alonga demais. Eu, mais ansioso para limpar os ouvidos que para acender um cigarro – hábito do qual já estou livre há quase dois meses -, perdido no Norte e na possibilidade de Nordeste, saí da farmácia muito concentrado nos meus pensamentos e lembranças, quando de repente ouvi alguém gritar “e aí, Fredão!”. Eu levantei a cabeça buscando meu interlocutor, olhei para um lado, para o outro, até avistar um conhecido, já lá na frente, seguindo caminho e acenando rapidamente para mim. Retribuí. Fredão. É engraçado porque, algumas pessoas, poucas delas, me chamam de Fredão sem me conhecer. É como tomar uma liberdade que não as dei, mas que gosto muito que roubem de mim. A primeira pessoa que me chamou de Fredão foi minha avó – e assim o faz até hoje – a mesma que das raízes do Nordeste evoca o Norte. Depois dela minha mãe, às vezes, quando não me chama de filho ou filhão – ou Fred, quando é para falar algo da esteira das obrigações. Ninguém mais do meu convívio cotidiano. Assim, Fredão ficou restrito a um círculo íntimo, minha avó e mãe, e ao mesmo tempo a poucos que pouco me conhecem mas já me engrandecem com um “ão”. Quando alguém me chama de Fredão, nos encontros e esbarrões, eu acho carinhoso – mesmo que não o seja. E essa história toda começou com minha avó. Foi aí, nestes segundos das coisas, já atravessando a rua, que eu tive certeza, pelo menos pra mim, que a atendente do caixa da farmácia se referia ao Norte, só que ao Norte da minha avó. Sinais. Vida que segue.