Dois homens sentados à mesa ao lado bebiam saideiras estendidas por mais de hora desde que o jogo havia acabado. Fluminense perdeu para o Grêmio, gostei do resultado, sou gremista quando não torço para o Flamengo por conveniência. As cores do tricolor gaúcho me chamam a atenção desde pequeno. Os dois homens torciam para o Flamengo, certamente por uma paixão da qual não compartilho, e não se afetaram pelo resultado da partida. Pouco prestaram atenção, na realidade. Um deles, o mais velho e experiente, investido de muita autoridade, cismava em analisar as atitudes de um terceiro, ausente, que ali não tinha chances de se defender. Pigarreando cigarro, ele enumerava detalhes da postura de quem chamava de “moleque” que não condiziam com comportamento de “sujeito homem”. Eu, antenado, de ouvidos em pé, sentia-me cada vez mais homem-predicado, homem-aposto, ou o contrário, qualquer tipo de homem que não o “sujeito”. Eu não me encaixava no perfil traçado pelo homem bêbado da mesa ao lado. Eu-moleque, felizmente. Seu acompanhante, um rapaz jovem e bonito, pouco falava. Concordava, porém, com tudo que saía da boca do homem falastrão, sábio, cheio de conhecimento. O jovem, pouco expressivo, ostentava preso ao pulso direito um relógio imenso, branco e dourado, tão grande, um vira-tempo, artefato de quem é Senhor do Tempo. Meus pulsos vazios me fragilizavam perto do rapaz, ele sentava muito confortável na cadeira do bar, a mochila no colo não o incomodava. Comparado ao mais velho, no entanto, eu me sentia engrandecido a cada afirmação assombrosa. Ele externava uma visão estreita do mundo, pouco reflexiva, permeada por clichês arraigados em preconceito e pouco conhecimento. No fim das contas, o homem não sabia de nada, de coisa alguma.
Naquele bar, entreouvido por aí, eu me sentia muito grande e inteligente, cada vez mais inteligente, superinteligente, até que minha inteligência, tão grande, tão enorme, começou a transbordar do cérebro numa desinteligência tamanha, arrogante e fechada dentro de si. Fui ficando inteligente sujeito homem. Precisei tomar mais um ou dois chopes para acalmar o pensamento quase bélico, enfurecido, burro. O homem seguia com o discurso de sujeito homem, terrível, eu cada vez mais inteligente à medida que minha inteligência acalmava, voltava ao normal, pouca inteligência. Estava ficando bêbado, minha atenção presa à mesa ao lado.
Mais metade de hora havia passado, o homem mais velho seguia analisando as coisas do mundo, deixou em paz o nome do moleque que como eu não era sujeito homem. Desembestou a falar sobre política, sociedade, exposições de arte, atores globais. Eu me distraí por algum momento quando o garçom avisou que a cozinha do boteco estava prestes a fechar, perguntou se eu gostaria de comer alguma coisa, última oportunidade. Respondi que não, pedi um energético, precisava de mais combustível para os ouvidos. Retomei o fio da meada quando ouvi o homem dizer que “gente feia adora ficar pelado”, assim, “pelado”, sem combinar o gênero do sujeito com o rabo do predicado. Ele criticava exposições de arte com a minuciosa inteligência de sujeito homem, associava nudez à falta de virtudes, o rapaz ao lado concordando com a cabeça. Pensei em pedir seu relógio emprestado, o de poder vira-tempo, para levá-los ao século 17 e lá deixá-los – enterrá-los. Deixei, porém, a viagem ao tempo de lado para me concentrar na afirmação do homem sábio, inteligente, ao dizer que gente feia adora ficar “pelado”. Lembrei de um amigo, muito bonito, que teria se divertido com esta afirmação. Eu estava intrigado. Será que o homem, muito feio, tremendamente feio – ao contrário do jovem Senhor do Tempo -, fazia parte do grupo de pessoas que adoram ficar peladas? Teria ele consciência de sua própria feiura? Ele, cheio de inteligência, criticava duramente a nudez alheia, traçava um panorama do que dizia ser “arte moderna” – uma queda livre engatilhada pela armadilha da palavra “moderna”. Um bocado ignorante, o homem. Um homem moderno.
Eu resolvi levantar para ir ao banheiro, minha bexiga e cabeça já estavam cheias. Sem pensar, pedi para que o sujeito homem olhasse por um instante meu copo de chope e lata de energético enquanto durasse o tempo na fila do banheiro. Coisa rápida. Ele foi educado, disse que eu ficasse tranquilo, “Fica à vontade, parceiro, vai lá”. Na volta, me convidou para sentar à mesa deles naquela longa saideira. Eu, que sozinho dou-me por sociável, trouxe meu chope e meu energético para a perto e, com a cabeça cheia de tanta burrice, soltei um último suspiro de inteligência: “Não entendo nada de arte moderna. Muito menos de gente feia e pelada, mas vocês viram que jogo fraco o do Grêmio?”. Divina ignorância! Troquei o chope por um terço de garrafa e voltei para casa com a cabeça vazia de política ou arte, mas com meia dúzia de pessoas peladas na imaginação.