As velhas se espremiam efervescentes por entre as gôndolas renovadas, carregavam cestas recheadas de produtos em promoção. A reinauguração de uma das principais farmácias no Catete, agora maior e mais moderna, repaginada, era o motivo de tanto alvoroço. Na porta, por onde cogitei sem sucesso não atravessar durante a grande semana de estreia, um sujeito com voz de cafajeste anunciava cosméticos e medicamentos mais baratos que o normal, ele usava o alto-falante para seduzir as velhas com preços cuidadosamente pronunciados número a número: “seis nove nove”; “cinco quatro oito”; “isso, minha senhora, eu falei Omeprazol a oito quatro nove”. A fila dos caixas não diminuiu durante aquela semana, enfileiravam-se todos os que buscavam preços mais em conta, curiosos, toda a gente do Catete, as velhas, eu.
Lá dentro, na farmácia lotada como bloco de carnaval, dava para sentir emanar das velhas de colo suado algo como um pouco de paixão, um pouco de tesão, um calor que alargava seus peitos, que as movia para lá e para cá, estavam incendiadas ali, naquele bordel de descontos e medicamentos, alcançavam o que podiam, conferiam a validade, peitos queimando como quando nós, os que ainda são ligeiramente jovens, saímos à noite sem saber se as possibilidades vão corresponder às expectativas. Algumas reclamavam da quantidade de gente, afinal, “esse povo não tem mesmo o que fazer numa hora dessas”. Circulando com cestinhas cheias, elas não mais precisavam registrar os produtos com uma atendente antes de seguir para o caixa – coisa que sempre me deixou irritado em algumas farmácias do Rio. O sistema da nova loja, renascida das cinzas de onde meu bar preferido, o Bar Getúlio, fechou as portas em 2010, estava mais simplificado: bastava escolher o produto da prateleira e ir direto para a fila. E a fila estava cheia delas, das velhas, chupando o que viam pela frente como abelhas fazem com o suco das flores. Eu que adoro as velhas, e sei que elas me adoram também, me enfiei no amontoado de gente apenas com a intenção de observar o formigueiro; comprei, porém, uns cinco ou seis sabonetes dos meus preferidos, os da marca Phebo que vêm em caixinhas cujos nomes são viajados e maravilhosos: “Figo da Turquia”, “Cedro do Marrocos”, “Alfazema Provençal”, “Tuberosa do Egito”, “Limão Siciliano”. Gosto de imaginar que as ervas e fragrâncias atravessam os oceanos para perfumar as barras que chegam até minha casa, imagino algo como eu imaginava as Companhias das Índias Orientais nas aulas de História, quando eu era ainda menos entendido das coisas.
No formigueiro de velhas apaixonadas, ouriçadas, enquanto a fila parecia não andar, dei por pensar no que mais teria o poder de deixar os peitos das velhas aquecidos, o coração mais acelerado, pulsante, com um amor disposto e quente, quase viscoso. Minhas considerações foram levando o pensamento cada vez mais longe, até chegar em algo que me desconcerta ainda mais a cabeça: a minha própria velhice. Às vezes eu me imagino velho, muito velho e limitado, empurrado numa cadeira de rodas num passeio pelo Aterro do Flamengo. A imagem de quem me empurra nunca é nítida, porém as minhas limitações de homem velho saltam o pensamento, passam pela garganta e espetam o coração. É muito desconfortável imaginar-se limitado, sem o peito atravessado de desejos, sem liberdade, sem poder correr o menor dos riscos. Na fila da farmácia, eterna e soberana, eu pensei como é bom encarar a possibilidade de certos perigos, e isso me levou a ouros dois pensamentos ainda mais detalhados.
Eu lembrei de como alguns riscos me fazem sentir desafiado, como por exemplo quando eu abro a porta principal do meu apartamento para levar o lixo à lixeira do corredor. Minha porta é dessas cuja maçaneta não gira por fora, ou seja, mesmo destrancada, se ela bater e eu estiver do lado de fora sem chaves, fico sem conseguir entrar em casa. Sempre quando vou à lixeira, com o saco plástico em mãos, escancaro a porta, deixo as chaves onde estão e saio acelerado para levar o lixo até a lixeira, na pressa para que a corrente de vento não bata a porta e não me deixe de short, descalço e sem camisa, trancado para o lado de fora. Eu sempre encaro o chaveiro, uma lembrança de uma amiga que visitou a Disney, confortavelmente encaixado do lado de dentro na fechadura, antes de decidir não arrancá-lo do lado de dentro do apartamento. Certa vez, a porta quase bateu. Riscos, riscos!
O segundo pensamento que veio à cabeça enquanto as velhas-formigas dilatavam varizes na festa da farmácia, foi a lembrança de que a consideração sobre possíveis riscos me levou a entender um pouco melhor o feminismo, há alguns anos. Eu nunca li nenhum livro ou autora renomada sobre o feminismo, déficit meu, o que sei sobre o tema encontrei nas redes sociais ou li artigos de mulheres que são intermediárias do feminismo, como colunistas e influenciadoras. Nunca, ou ainda nunca, fui em fontes mais concretas de especialistas. Na verdade, seria toda e qualquer mulher uma legítima especialista em feminismo? Por um lado, acredito que sim. Mas, certa vez, ao pensar sobre os riscos que corro, entendi concretamente algumas limitações das mulheres. Eu estava conversando com uma amiga sobre as coisas que sentimos, coisas cotidianas, e eu queria que ela entendesse como, para mim, é importante voltar tranquilamente da Lapa, a pé, nas altas horas, quando a cor do céu permite enegrecer o coração nos impulsos, em pensamentos ébrios, toscos, ridículos. Ela, por considerações de segurança muito mais graves que as minhas, não se sentiria confortável nem de pensar em voltar sozinha, a pé, da Lapa. Tampouco conseguiria entender o que é sentar no gramado do Aterro, à noite, mesmo quando os guardas ainda se fazem presentes, e olhar para Niterói no horizonte com tranquilidade. Eu queria falar sobre essas coisas com uma amiga, ela é uma das que gostam de falar sobre as sensações, mas não entenderia porque os riscos, para ela, ultrapassam todos os limites do aceitável apenas por ela ser mulher. Tudo muito difícil. Foi aí que essa dificuldade em conseguir comunicar sensações me despertou para a questão feminina e para um aprendizado que deve ser cotidiano.
Eu, na farmácia, com o pensamento longe, voltei a atenção às minhas velhas. Já estava no caixa pagando pelos meus sabonetes. Sei que não me sentiria limpo como sinto quando compro os sabonetes antibacterianos, que parecem eliminar toda e qualquer impureza do corpo, mas me sentiria mais perfumado e viajado, mesmo que no plano das ideias. Minhas velhas do Catete estavam em polvorosa, os corações seguiam em chamas. O meu também estava aceso, em sintonia com todas elas. Angústia apenas na incerteza da velhice, do que vai ser capaz de incendiar minha mente e coração quando eu estiver velho e limitado. Não sei se os jovens vão me adorar, tampouco sei se eu vou adorar os jovens como as velhas do Catete me adoram. Em casa, depois da academia, tomei banho pensando se as coisas que ouriçam as velhas do Catete são as mesmas que efervescem as que eu imagino colher figos na Turquia ou Alfazema em campos franceses. Não sei, não entendo muito bem a velhice e acredito que vá demorar mais um bocado para eu entendê-la. Talvez eu, vai saber, eu nunca chegue a entender. São os riscos!