Seu José Monteiro morreu na terça-feira. Nós compartilhávamos o mesmo andar no prédio, ele no 504, eu no 510. E apenas isso. Ele, já com limitações enormes de homem muito velho, equilibrava-se vagarosamente com o auxílio de duas bengalas; era dono de seu próprio tempo, escutava só o que a idade lhe permitia – quase nunca respondia meus cumprimentos. Nossa relação limitava-se à minha enorme paciência em esperá-lo alcançar o elevador para que pudesse entrar tranquilamente, sem a preocupação de segurar os dois apoios de madeira com apenas uma das mãos. Deus sabe, lá no topo do céu, quantas vezes eu pensei em desistir. Nunca o fiz.
Eu não saberia o nome do velho, José Monteiro, não fosse o aviso do velório preso à porta do elevador. Perguntei ao Isaías, o porteiro-chefe, cuja grafia correta também pode ser feita com z, se o anúncio tratava do velhinho do 504. No fundo, eu já sabia. Subi para meu apartamento pensando numa série de impossibilidades; que seu José Monteiro não terá chances de acompanhar o resultado das eleições em 2018 ou da Copa do Mundo. Tampouco verá os desdobramentos da intervenção do (P)MDB de Temer no (P)MDB fluminense de Pezão. Penso que de intervenção seu José já havia de estar cheio – o imagino ainda garoto, orelhas grudadas no rádio, ouvindo atentamente anúncios de intervenções ainda mais drásticas mundo afora, Brasil adentro. A morte interveio nesta terça-feira deixando seu José das duas uma: cheio de dúvidas ou coberto de infinitas certezas. Decerto, a mim, restaram as dúvidas.
Não sentirei saudades do velho Monteiro, mas acredito que ele permaneça nos sentimentos de alguns de seus familiares. Talvez ele ainda exista no olhar de um neto, numa boleira de porcelana pintada a mão ou numa cristaleira antiga, numa casa de veraneio no interior do estado. Pode ser que algum de seus netos nunca tenha tido a oportunidade de segurar a porta do elevador para o avô como eu tive, foram inúmeras vezes – a morte tende a ser ingrata. Ele, porém, pode nunca ter-se multiplicado em netos, filhos; os irmãos talvez o tivessem deixado sozinho, no Catete, como ele costumava estar, velho, devagar, com as limitações de homem fraco que eu temo um dia ter que enfrentar. Também temo ter que um dia sentir a dor profunda da morte, sensação que ainda, felizmente, eu desconheço. Não sei o que é enterrar, no sentido literal da palavra, um amor de perdição, alguém que eu amasse incondicionalmente. Um dia, e depois em outros, é provável que aconteça. Não quero. Imagino a tristeza de quem amava seu José Monteiro em um dia em que meu único desconforto havia sido, até ali, ter que descer para pegar o jornal.
Eu desci para pegar o jornal; sou o único do prédio que recebe diariamente o Estado de S. Paulo – Izaías, cuja grafia correta também pode ser feita com s, me contou. Neste breve espaço de tempo entre meu apartamento e a portaria – encurtado pelo fato de não ter que esperar seu José Monteiro – eu me vi obrigado a enfrentar meia dúzia de reflexões acerca da morte. Meu vizinho morreu, estava escrito na porta do elevador, e a minha vida seguiu no mais previsível dos cotidianos. Haveria como não ser estranho? Eu sempre digo e repito: é tudo muito doido.