“Era melhor quando a milícia tomava conta”, me disse agora uma pessoa com quem convivo praticamente desde quando nasci. Eu a adoro, e adoro ainda mais o tempo que passamos juntos, semanalmente, quando ela chega para cuidar das tarefas domésticas da minha casa. Sento no sofá enquanto ela passa as roupas que eu uso e conversamos sobre as coisas da vida. As roupas que eu uso.
Ela mora em um lugar carente até mesmo de asfalto, dominado pela violência encarnada em homens sem camisa, fuzis apontados para o alto, controle de entrada e saída, eles invadem seu quintal de supetão para filar o churrasco de fim de semana. Todo fim de semana tem churrasco regado a “cracudinha” de Antarctica. São cinco por R$ 10, ela me disse. “A milícia, ao contrário dos traficantes, não mexe com os moradores”. Não parece haver outra opção.
Hoje ela me contou um caso triste. Seu vizinho, um menino de 13 anos, usou a corda com a qual costumava brincar e se enforcou, quebrou o pescoço pendurado da laje. Era gay, “todo desmunhecado” segundo ela, mas um bom menino. Tinha até mesmo as unhas crescidas como deixam as artistas da TV. Ela me perguntou o que leva uma pessoa a se matar, respondi que deve ser a brutalidade do sofrimento, da agonia e da falta de amparo que impede enxergar luz no fim do túnel. Eu disse que ele deveria estar sofrendo muito.
O telefone dela tocou, segurou o aparelho entre o ouvido e o ombro, posição que me mata, e, passando as roupas que eu uso, danou-se a comentar com a irmã o suicídio do jovem. Ela dizia que não havia problema do menino ser gay, que achava ser menos pior do que quem rouba ou mata. Do outro lado da linha, a mulher fez o que entendi ser uma piada, as duas riram. Ao fim da ligação, ela me contou: “Minha irmã disse que ele foi sentar no colo errado… No colo da capiroto. Que coisa horrível!”.
Eu disse que não há problema em ser gay, e que, óbvio, muitas famílias não estão acostumadas com isso, mas que as pessoas nascem assim, exatamente como ela percebeu gostar de homens em algum momento da infância. Que ninguém pode mudar isso e que não é algo a ser mudado. As pessoas precisam entender. Ela concordou, disse que viu dois homens se beijando na Cinelândia e achou normal, que as crianças têm que ter boa educação para lidar com isso. Concordei dizendo que ninguém aprende a ser gay. “Não, Fred?”. Não. Ela falou que “na área dela” dizem que a Globo ensina, que é culpa da Globo. Mudamos de assunto. Voltamos a falar das “cracudinhas” que, no meu Carnaval, costumo pagar R$ 10 por três, vendidas justamente pelas famílias que vêm em bando com seus isopores lá da “área dela” (e dizem que brasileiro não gosta de trabalhar).
Nesta semana, um jovem de 13 anos pegou a corda com a qual costumava pular, passou pelo pescoço e se jogou de uma laje que eu imagino quente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Era gay, tinha unhas grandes como as das artistas da TV, traços femininos, possivelmente sofria bullying (algumas pessoas traduzem como “besteira”) e carregava o peso nas costas de temer ser um desgosto para uma família – imagino, não os conheço. Família essa que carece até mesmo de asfalto para se locomover. Quando chove é um problema. Família como a da minha amiga, que precisa fazer os filhos se alistarem no exército para “ter uma chance de sucesso”: “Eu não tenho como pagar uma faculdade, né, Fred”. Ela não vai votar em ninguém, disse que todos são corruptos. Ao fim das roupas passadas, as roupas que eu uso, ela me perguntou o que acontece com as pessoas que se matam, porque, segundo a irmã – leitora fiel da bíblia – não há salvação. Eu não soube responder, mas que uma coisa é certa: nós, os vivos, possivelmente não vamos para um bom lugar, com ou sem as roupas que usamos.