Insônia

É como quando desembarcamos num aeroporto em outro país, e frente à esteira por onde giram as malas a ansiedade começa a se intensificar. Eu acordei assim nesta madrugada. Essa ansiedade, que não foge do controle, nasce do cansaço de horas em um voo econômico e da expectativa de boas férias. Parado ali, no aglomerado de gente de todo mundo no aguardo por suas malas largadas na esteira, muito distante da minha língua nativa, eu fico um pouco mais ansioso. A demora da mala escurece o pensamento, me imagino no hotel por um ou dois dias sem roupas limpas. Imagino a burocracia, a companhia aérea, pensar em inglês. É uma ansiedade controlada, porém. As pessoas, aliviadas, pedem licença uma a uma ao alcance de suas bagagens. Eu, olhando atento, parado ali, numa ansiedade que nasce com o cansaço. É meio assim que me senti ao acordar nesta madrugada. Não dormi mais.

Minha infância foi permeada por noites insones. Do meu quarto, eu assistia à programação do Shoptime madrugada adentro numa época em que o Ciro Bottini ainda sustentava pinta de galã e a Viviane Romanelli comandava com muito entusiasmo o meu programa favorito do canal: TV UD. Eu sonhava acordado com as fornadas de donuts e waffles feitas em máquinas modernas, coloridas, com o respingar da massa no percurso entre concha e chapa quente; as rosquinhas iam da bancada diretamente para o estômago da equipe técnica do programa. Achava graça como tudo aquilo era conduzido, tão informalmente, sempre num bate-papo com “o diretor” numa correria para vender vender vender antes que a próxima atração começasse – o consumo ainda dependia da TV. Azar o meu se o programa seguinte fosse o “Casa & Conforto”; lençóis e toalhas, ao menos naquele tempo, não me interessavam. A insônia ficava mais triste. No meu quarto não tinha TV a cabo.

As noites mal dormidas invadiram a minha pré-adolescência, quando eu passei a levantar da cama para me esparramar na poltrona da sala – eu já não tinha tanto medo de atravessar o corredor escuro. Lá havia a possibilidade da SKY, todos os filmes, Telecine, desenhos, documentários. Às tardes, eu costumava conferir a programação noturna dos canais para saber o que eu poderia assistir se porventura acordasse no meio da noite, era sempre involuntário. Foi numa dessas vezes que eu esbarrei com um dos filmes do italiano Pier Paolo Pasolini no Telecine Classic – a versão anterior do que agora é Cult. Eu tinha 12 ou 13 anos. “Salò ou os 120 dias de Sodoma” rachou meu peito em dois, eu nunca vou esquecer da sensação de atração e repulsa. Eu tinha 12 ou 13 anos.

Hoje eu acordei de madrugada e não consegui mais dormir, episódio raro visto que não sei o que é insônia há pelo menos 15 anos. Meu sono foi ficando cada vez mais profundo com o passar do tempo. Hoje, porém, foi diferente. Um pesadelo me despertou às duas da matina e não preguei o olho. Não tenho mais televisão no quarto e máquinas de waffle já não me interessam, estou satisfeito com meus poucos eletrodomésticos. Quanto à maldição de Pasolini, diluí ao longos dos anos entre personagens que vão de Gregório de Mattos a Marilyn Manson ou Glauco Mattoso a Luís Capucho. Ou Jean Genet ou Plínio Marcos ou Ozzy Osbourne. Acho que fiquei calejado – há coisas que marcam nossa vida para sempre.

Eu acordei às duas da manhã; uma insonia ligeiramente agoniada no gelo artificial do ar condicionado. Os mosquitos, recolhidos, talvez estivessem cavando novas frestas no apartamento para invadi-lo com tudo quando o verão começar. Eles, vocês sabem, não são bichos que voam por aí como tontos, sem rumo. Eles planejam tudo, os ataques, o inferno próximo ao ouvido, as manchinhas de sangue no lençol. Nesta madrugada, os imaginei sentados conspirando, dando uma trégua. Deixaram minha insônia em paz, decerto já haviam sacado que eu estava um pouco ansioso – o sangue dos ansiosos é pior, acredito. Eu, por alguns longos minutos, tentei pensar em coisas bonitas para retomar o sono, liguei o Spotify, música tranquila para adormecer. Uma viola light interrompida esporadicamente pela geladeira estalando macabra lá na cozinha. Não preguei o olho.

Decidi aceitar a insônia, pensei ser mais fácil aceitar os imprevistos da vida para que possamos lidar melhor com eles. Me coloquei no lugar de amigos que enfrentam dificuldades para dormir e desejei que estivessem dormindo tranquilamente, como se uma espécie de compensação universal equilibrasse o estado das coisas. Comecei a viajar no pensamento exatamente como estou viajando nesse texto. Deitado, ligeiramente ansioso, como se estivesse em pé frente à longa esteira de malas e fora da minha zona de conforto, lembrei de “Salò ou os 120 dias de Sodoma”. Desejei que mais pessoas tivessem visto esse filme, uma representação bem crua da didática perversa da união promíscua entre poder econômico, igreja, Justiça e nobreza – talvez essa tenha sido justamente a razão da minha ansiedade. As coisas estão turvas e parece que não temos conseguido ir além do que se vê. E com isso vem a ansiedade, em pé, bem na frente da esteira girando. Acho que vocês devem estar sentindo isso também.

E a esteira segue girando.