Carta ao Leandro 20

Escrevo de um lugar onde você nunca esteve, de um tempo que você não chegou a ter — ainda incontrolável, porém. Não tem sido fácil. Ao passo que a política se mostra cada vez mais bruta, mais ainda do que quando você estava vivo, um vírus escroto confronta a ordem das coisas, arranca nosso centro. O todo está tão desconfigurado que nós não vemos saída senão o exercício de encontrar felicidade nas pequenas coisas. Dia desses me peguei feliz ao assistir a um vídeo do Caetano, de pijama, explicando a previsão furada do Celso Cunha, ainda nos anos 1980, de que o “r” retroflexo entraria em profunda decadência no Brasil. Ele arregala os olhos e chama o Moro, que agora é ex-ministro, de “ex-tudo”. Você se divertiria.

À medida em que a vida sinaliza um ciclo de desafios sem fim, o tempo, compadecido, se disfarça acelerado. Você morreu há um ano, parecem cinco. O Caetano parece cinco anos mais velho, as mãos tremem muito mais. O Thom Yorke está cinco anos mais velho, minha barba está cinco anos mais branca — não é brincadeira. Nem a voz do Ney Matogrosso passou incólume por esse ano-que-parece-cinco. É engraçado o que o tempo faz com as coisas. Ontem mesmo eu estava assistindo a uma entrevista do Cazuza com a Marília Gabriela, em 1988, e ele dizia que a consagração máxima de um artista é subir aos palcos do Canecão. O que o tempo faz com as coisas, Leandro?

Eu tenho tentado tocar mais violão, ainda muito rudimentar, porque você morreu e não há quem toque as músicas que eu gosto de cantar. Eu ainda me pego preso às lembranças da nossa adolescência — elas me assombram e fascinam a todo tempo, você sabe. Talvez algum dia eu consiga controlar essas sensações que ainda são muito físicas e me trazem um certo desconforto. Eu penso se um dia eu terei lembranças melhores do que as que nós construímos juntos. Deixo nas mãos do tempo, você sabe, tenho evitado pensar o longo prazo.

Eu não quero falar das dores. Eu tenho estado em paz, o trabalho tem consumido uma parte enorme do meu tempo, e diante de tanta maluquice no mundo — as pessoas participaram de festas juninas on-line, você acredita? — eu sigo grato por estar concentrado no meu próprio eixo. Sua partida desequilibrou tanto o estado normal das coisas que o caos coletivo da pandemia pareceu apenas o segundo capítulo de um momento difícil. Eu sinto como se estivesse mais preparado, a casca mais dura. Sinto a bem-vinda obrigação de estar bem comigo mesmo antes de estar bem com o mundo e isso é confortante. Também sempre fui muito bem resolvido com a tristeza e ela tem um papel essencial na minha vida; eu também sou triste.

Hoje faz um ano que você morreu, Leandro, e eu sinto muitas saudades. Eu estou me preparando, dentro da minha própria cabeça, para quando as lembranças que nós temos juntos começarem a ficar mais enevoadas, mais símbolo, mais fantasiosas. Esse momento vai chegar, aos poucos, e eu quero estar preparado para isso. Quero estar preparado para essa espécie de sonho, quando você estará cada vez mais distante, mas ainda iluminando a minha história como um farol que nunca apaga. A nossa história foi muito bonita e eu te prometo que a minha continuará sendo.

Meu amigo, sua partida me coloca na desconfortável esperança de que haja algo a mais depois da morte. Esse é um lugar religioso ao qual não pertenço, mas sua ausência me confronta com esse desejo. Torço para que um dia eu possa te dar um abraço carinhoso, como quando você gostava de pular e girar dizendo que estava com saudades. Quando eu também não for mais carne, espero que nossos espíritos possam se reencontrar. Por enquanto, ainda é dor. Logo mais, eu te prometo, será um sonho bom. Você faz uma tremenda falta.

Com muito amor,

Fred.