A menina alcançava os botões do elevador, um a um, contando em inglês. One, two, three… por sorte não os apertava, apenas passava o dedo por cada bolinha, como numa lição de casa prática. Foi até o ten já na ponta dos pés. Eu completei com eleven e twelve num tom didático, bem infantil; o prédio onde moro vai até o décimo segundo andar. A avó, ajeitando os cabelos no espelho ao fundo, olhou orgulhosa para o reflexo da neta que retribuiu repetindo: eleven… twelve – os dois últimos botões, ela não os alcançava. Dei-lhe nota dez aproveitando a carona num sorriso e abri a porta do elevador. Moro no quinto andar, elas subiam em direção ao sexto.
Antes de chegar ao meu apartamento, cumprimentei duas velhas que conversavam efusivamente em frente às escadas. Entre elas ficou acertado que o Catete já não é mais o mesmo, anda sujo e mal cuidado, motivo pelo qual já não gostam tanto de sair de suas cavernas. As velhas falavam alto, sem consciência do volume de suas próprias vozes – a do 503 é surda de um dos ouvidos. Eu rosqueava a chave no buraco da fechadura pensando na decadência do Catete, na decadência da coisa toda – talvez fosse apenas uma fase. O que será do Catete quando a menininha do elevador estiver diante de sua primeira entrevista de emprego em inglês?
Da minha infância, de quando aprendi inglês, lembro pouco. Eu construo minhas lembranças mais concretas a partir de uma foto em que eu apareço ao lado da Camila, minha primeira namorada, gordinho, vestindo uma camisa larguíssima do Ozzy Osbourne. Eu tinha 13 anos e daquela época guardo na memória dos dedos o riff de “Black Night”, do Deep Purple, que eu adorava tocar no baixo – minha mãe pagou por ele R$ 700 reais, eu ainda lembro. É engraçado como a roleta russa da memória joga com a gente; eu posso não lembrar o que comi há meia hora, mas algumas situações tão específicas de passados tão distantes às vezes tomam conta do pensamento. Situações tão pouco memoráveis. A memória, eu acredito, é o maior dos milagres.
Eu me lembro do Carlos, de quem não tenho notícias, me contar que “Am I Evil”, do Metallica, era a musica mais pesada do mundo, na quinta ou sexta série. Eu me lembro do Lucas simular o pênis com um tubo de ensaio, na aula de ciências, para zombar de um menino tímido da turma. Me lembro muito bem das veias saltando do pescoço da Tia Nadir, na segunda série, conforme ela brigava com a turma afirmando em alto e bom tom que Deus não castiga, Deus ama. Jamais vou esquecer do mau hálito do técnico que consertava meu computador quando ele ainda era um Windows 95. É engraçado lembrar de como eu me incomodava quando as camisetas do meu uniforme escolar começavam a ficar amareladas – lembro que as do Régis também ficavam, mas nele os tons amarelos caíam bem. Eu lembro de todas as minhas paixonites e da tristeza diante das impossibilidades. A memória é um milagre.
Meu grande amigo morreu na madrugada do dia 12 de julho de 2019. Dormiu e não acordou mais. Dele eu lembro muito bem, as lembranças são muito carinhosas – mas ainda igualmente dolorosas. Eu passo pelas velhas do quinto andar num estranhamento com a vida, uma espécie de incredulidade, é bizarro que elas ainda estejam vivas e meu amigo não. Tendo a aceitar as coisas, mas penso que ele deveria morrer em algum momento ainda muito distante, em alguma fração de tempo entre o sopro de vida das velhas e da menina do elevador. Não sei ao certo se antes ou depois de mim. Pouco importa.
Eu estou no elevador, subo ao quinto andar, me acompanham uma menina muito jovem praticando o inglês e uma mulher que acredito ser sua avó. Entre elas as coisas parecem dentro da normalidade, dentro da relação neta-avó, tudo dentro do que se pode prever. Quanto a mim, sinto as coisas mais inquietas, alvoroçadas, mas bem longe do escopo da ansiedade. Ansiedade é uma palavra perigosa. Eu acompanho a contagem da menina, andar por andar, e minha memória ativa o meu “um a dez” em hebraico seguido do meu “um a dez” em alemão. Vacilo ao tentar organizar o “um a dez” em espanhol, pois na minha cabeça ele mora na caixinha do achismo e não da memória.
Paro diante da porta do meu apartamento, enfio a chave no buraco da fechadura com um certo prazer, no turbilhão da cabeça a decadência do Catete, da coisa toda, um amigo morto, a exigência do uniforme branco e a beleza do que pode ser amarelo. O Catete, o Catete, o Catete. Organizar o pensamento tem sido uma tarefa e tanto, 2019 me parece um ano repleto de meandros e complexidades. Eu posso reclamar, mas não posso. Filosofo comigo mesmo pensando que na verdade o tempo não existe, tampouco um ano ou dois. São apenas palavras, que bobeira. Eu entro no meu apartamento.
One, two, three, four, five, six, seven, eight, nine, ten.
Achat, shtajim, shalosch, arba,
chamesch, shesch, scheva,
schmone, tescha, eser.
Eins, zwei, drei, vier, fünf, sechs, sieben, acht, neun, zehn.
Respiro. A gente precisa lembrar de tanta coisa.
Estamos em novembro de 2019, um ano repleto de meandros e complexidades. Eu subo ao quinto andar, a menina e a avó sobem ao sexto. Eu não sei até quando eu vou lembrar do que eu era, ou sou por enquanto. Eu sei que em cinco ou dez ou vinte anos a menina do elevador jamais lembrará da minha intromissão, em um elevador do Catete, ao tentar ensiná-la a ir além do dez em inglês. Quanto a mim, talvez jamais a esqueça, assim como eu jamais esquecerei do meu amigo morto, das camisas amareladas, da feiura do Carlos me mostrando as músicas do Metallica. Do Catete.
Eu rosqueio a chave, entro no meu apartamento, mas sinto como se ainda estivesse subindo no elevador.
A memória é o maior dos milagres.
Eu sou sua vizinha e o Facebook me sugeriu você como amigo.
Sem te reconhecer, entrei no teu perfil e cai no blog.
Me emocionei algumas vezes, de lágrimas e risos.
Eu nasci na Maré e cresci no subúrbio. Sempre indo e vindo da Maré, para a Maré e andando o restante da cidade para estudar, visitar amigos e coisa e tal.
Quando eu era pequena minha mãe, professora do município, teve acesso a um crédito e fomos, eu, ela e meu pai, bombeiro, ver um conjugado perto da São Salvador.
Meu pai conta que eu saí de lá falando que era feio e coloquei uma pilha errada na minha mãe. Que comprou meu desgosto e não quis investir num pequeno apartamento na zona sul, que não sei pra quê serviria.
Eu ia sei lá quantas vezes no mês no Largo do Machado com meu pai. Deixávamos o carro no quartel de bombeiros do Catete (que não sei pq chama Catete se tá de frente pra São Salvador) e íamos andando. Na volta, comíamos no quilo que existe até hoje. É caro e cheio de variedades. Talvez seja o único quilo que eu realmente goste. A comida é boa e me lembra minha infância – em que o moço do churrasco ficava chocado como uma pequenininha gostava tanto de alho na carne.
No Carnaval de 2016 o Catete me escolheu. Cheguei pra passar o carnaval na casa da minha melhor amiga, suburbana como eu e de volta dos longos anos estudando medicina em Petrópolis. Ela me chamou pra passar o Carnaval no sobrado onde ela ia morar dali em diante com o irmão. Me mudei pouco tempo depois para o terceiro dos quatro quartos do sobrado com terraço, na Bento Lisboa.
Fui feliz ali, mas foi breve.
Logo me mudei sozinha para o 30 da Silveira Martins, Ed. Progresso. Só eu sei o quanto aquele movimento representava progresso.
Encontrei vizinhança e afeto. Meus porteiros são quase todos amorosos e cuidadosos comigo. Mudei de perna quebrada e eles sempre foram parceiros na aventura de me estabelecer aqui.
No meu prédio tem aviso no elevador quando um vizinho morre. Tem foto posada da síndica nova convocando pra gente entrar no grupo do Whatsapp do prédio (credo!). Tem vizinha velha que insiste em ir na feira as terças e demora um tempo longo até chegar ao elevador (sempre espero, mas da minha cabeça não sai o exercício de contar quanto tempo ela gasta pra ir e voltar da feira e o esforço de carregar o carrinho). Tem também uma vizinha idosa que não sai lá de baixo. Sofre de solidão e tá sempre falando sozinha. Outro dia queria ajuda do porteiro pra contar as moedas que tinha. Disse que o filho estava todo o tempo no computador.
A gente sempre se cumprimenta e ela é muito calorosa.
Eu sou amiga do Vini, o guardador dos carros e ele sempre que dá me salva dos guardas. Nesse tempo todo só fui multada uma vez.
Minha mãe, nordestina que migrou pra Maré com 6 anos e cresceu lá, fala que quer morar no Catete. Meu pai, nascido e criado na Maré, fala que quer voltar pra Maré pra envelhecer ou então pra Bonsucesso. Por causa dos amigos e da sociabilidade da rua. Quando ele vem me visitar rola festa na portaria.
Tudo isso pra te agradecer sua escrita sensível sobre esse bairro que me acolheu e que eu sinto ser meio o subúrbio dessa zona sul cada vez mais distante (física e simbolicamente) da cidade, sei lá.
Adoro abacaxi descascado e sempre tento sorrir pra o povo que fala das roupas na calçada, que entrega os papéis dos dentistas e das academias…
Fiquei animada com a ideia de descascar a vida. Rs
Obrigada pelas partilhas de olhares.