Divina ignorância

Dois homens sentados à mesa ao lado bebiam saideiras estendidas por mais de hora desde que o jogo havia acabado. Fluminense perdeu para o Grêmio, gostei do resultado, sou gremista quando não torço para o Flamengo por conveniência. As cores do tricolor gaúcho me chamam a atenção desde pequeno. Os dois homens torciam para o Flamengo, certamente por uma paixão da qual não compartilho, e não se afetaram pelo resultado da partida. Pouco prestaram atenção, na realidade. Um deles, o mais velho e experiente, investido de muita autoridade, cismava em analisar as atitudes de um terceiro, ausente, que ali não tinha chances de se defender. Pigarreando cigarro, ele enumerava detalhes da postura de quem chamava de “moleque” que não condiziam com comportamento de “sujeito homem”. Eu, antenado, de ouvidos em pé, sentia-me cada vez mais homem-predicado, homem-aposto, ou o contrário, qualquer tipo de homem que não o “sujeito”. Eu não me encaixava no perfil traçado pelo homem bêbado da mesa ao lado. Eu-moleque, felizmente. Seu acompanhante, um rapaz jovem e bonito, pouco falava. Concordava, porém, com tudo que saía da boca do homem falastrão, sábio, cheio de conhecimento. O jovem, pouco expressivo, ostentava preso ao pulso direito um relógio imenso, branco e dourado, tão grande, um vira-tempo, artefato de quem é Senhor do Tempo. Meus pulsos vazios me fragilizavam perto do rapaz, ele sentava muito confortável na cadeira do bar, a mochila no colo não o incomodava. Comparado ao mais velho, no entanto, eu me sentia engrandecido a cada afirmação assombrosa. Ele externava uma visão estreita do mundo, pouco reflexiva, permeada por clichês arraigados em preconceito e pouco conhecimento. No fim das contas, o homem não sabia de nada, de coisa alguma.

Naquele bar, entreouvido por aí, eu me sentia muito grande e inteligente, cada vez mais inteligente, superinteligente, até que minha inteligência, tão grande, tão enorme, começou a transbordar do cérebro numa desinteligência tamanha, arrogante e fechada dentro de si. Fui ficando inteligente sujeito homem. Precisei tomar mais um ou dois chopes para acalmar o pensamento quase bélico, enfurecido, burro. O homem seguia com o discurso de sujeito homem, terrível, eu cada vez mais inteligente à medida que minha inteligência acalmava, voltava ao normal, pouca inteligência. Estava ficando bêbado, minha atenção presa à mesa ao lado.

Mais metade de hora havia passado, o homem mais velho seguia analisando as coisas do mundo, deixou em paz o nome do moleque que como eu não era sujeito homem. Desembestou a falar sobre política, sociedade, exposições de arte, atores globais. Eu me distraí por algum momento quando o garçom avisou que a cozinha do boteco estava prestes a fechar, perguntou se eu gostaria de comer alguma coisa, última oportunidade. Respondi que não, pedi um energético, precisava de mais combustível para os ouvidos. Retomei o fio da meada quando ouvi o homem dizer que “gente feia adora ficar pelado”, assim, “pelado”, sem combinar o gênero do sujeito com o rabo do predicado. Ele criticava exposições de arte com a minuciosa inteligência de sujeito homem, associava nudez à falta de virtudes, o rapaz ao lado concordando com a cabeça. Pensei em pedir seu relógio emprestado, o de poder vira-tempo, para levá-los ao século 17 e lá deixá-los – enterrá-los. Deixei, porém, a viagem ao tempo de lado para me concentrar na afirmação do homem sábio, inteligente, ao dizer que gente feia adora ficar “pelado”. Lembrei de um amigo, muito bonito, que teria se divertido com esta afirmação. Eu estava intrigado. Será que o homem, muito feio, tremendamente feio – ao contrário do jovem Senhor do Tempo -, fazia parte do grupo de pessoas que adoram ficar peladas? Teria ele consciência de sua própria feiura? Ele, cheio de inteligência, criticava duramente a nudez alheia, traçava um panorama do que dizia ser “arte moderna” – uma queda livre engatilhada pela armadilha da palavra “moderna”. Um bocado ignorante, o homem. Um homem moderno.

Eu resolvi levantar para ir ao banheiro, minha bexiga e cabeça já estavam cheias. Sem pensar, pedi para que o sujeito homem olhasse por um instante meu copo de chope e lata de energético enquanto durasse o tempo na fila do banheiro. Coisa rápida. Ele foi educado, disse que eu ficasse tranquilo, “Fica à vontade, parceiro, vai lá”. Na volta, me convidou para sentar à mesa deles naquela longa saideira. Eu, que sozinho dou-me por sociável, trouxe meu chope e meu energético para a perto e, com a cabeça cheia de tanta burrice, soltei um último suspiro de inteligência: “Não entendo nada de arte moderna. Muito menos de gente feia e pelada, mas vocês viram que jogo fraco o do Grêmio?”. Divina ignorância! Troquei o chope por um terço de garrafa e voltei para casa com a cabeça vazia de política ou arte, mas com meia dúzia de pessoas peladas na imaginação.

Rapidinha 3

Malha (treina) na minha academia um rapaz magro de dar dó. Vejam bem, eu não tenho nenhum tipo de preconceito contra magros, longe disso, considero magros, magros, e somente magros, estão me entendendo? O rapaz magro, no entanto, me chama a atenção sempre que nos esbarramos na academia. Ele malha, malha, malha (treina, treina, treina) – o acompanho há um par de anos -, e pouco se desenvolve, continua muito magro. A postura mudou, a magreza permanece. O que mais me intriga, porém, é o quão intendido de futebol ele é. Eu o encaro, tão magro, e me pergunto como tanta informaçãofutebolística se coloca de forma tão eloquente e firme naquele corpo miúdo, enfraquecido. Quando chega na academia, é um cara descolado e popular, desata a comentar tudo que envolve bola no pé. Ele conhece os técnicos dos principais times dos países para os quais a gente aponta o dedo no mapa na hora de sonhar viagem de férias. Croácia, Dinamarca, Romênia. Tem futebol na Albânia? O menino explica a trajetória do jovem jogador russo que fraturou a perna pouco depois de ser contratado por um time brasileiro, prevê futuro incerto de algum time em algum campeonato europeu; tem na ponta da língua a tabela do brasileirão, ele provavelmente já conhece o resultado. Só ele. Quando o assunto é Flamengo, é um Deus nos acuda: ele profetiza as partidas melhor do que o Zico ou que a Globo. Diz que a Globo é flamenguista, acho graça, imagino ele no Twitter. Eu vou até o bebedouro, troco de aparelho, e o menino está lá, falante, gastando toda a energia do corpo magro com futebol. Quanto aos pesos, leves, marcam no braço o esforço de carcaça de inseto. Quando fala de futebol, porém, vira leão, forte, entendedor, me intimida.

Eu tento me concentrar na música que ouço; os comentários do menino como percalços na minha rotina, futebol, não entendo muito bem o que ele diz, de longe vou ficando fraco. Ele analisa o estilo dos técnicos alemães, traça um panorama do pós-guerra ao 7×1. Eu fico impressionado com tanto conhecimento, tanta noção de tanta coisa, um corpo miúdo, maior que todos, eu nunca soube tanto de coisa assim. Ele fala até dos times asiáticos, dos quais não tenho menor paciência de ouvir, aumento o volume da música. Lamento que o horário em que ele e eu malhamos – treinamos – não coincide com o horário da moça que malha – treina – fazendo “lives” no Facebook. Só ela consegue me dominar por completo, ter toda minha atenção. Ela coloca o smartphone para o alto e pronto: está ao vivo para todo mundo que quiser ver. Não aguento, derreto por completo, vou-me embora, sinto-me mais forte do que quando entrei na academia – embora barrigudo -, mas mais cabisbaixo, futebolístico, ao vivo. Sinto mais “live” e pouco alive. Penso que deve ser mesmo essa a “age of gold, yes the age of old, the age of gold”. Aumento o volume, cara. Preciso aumentar o volume. Vocês se ligaram? Desculpem a repetição, a besteira. Que loucura.

Cachorro-quente

Deslizaram as palmas da mão uma contra a outra; ao fim, um toquinho de punhos cerrados. Os dois se encontraram por acaso, acredito, e juntos seguiram em direção ao Largo do Machado. Um deles disse que o pai estava em casa preparando cachorro-quente, estendeu ao outro um convite para o lanche. “Bora!”; não deveriam ter mais de 19 anos. Eu estava logo atrás, seguindo na mesma direção, de orelhas e olhos em pé na conversa alheia. Ambos tinham os calcanhares ressecados típicos dos rapazes cariocas – sempre em contato com o chão quando as havaianas escapam dos dedos -, consenso entre os playboys esbeltos da Gávea, os suburbanos perfumados do Catete, Parada de Lucas ou Todos os Santos. Uma desidratação universal característica da tal democracia da praia, sistema político do qual o povo da Guanabara tanto se orgulha. Aqui estão todos juntos, algo assim; não há hidratante ou podólogo que resolva – não há nada a ser resolvido.

Eu seguia logo atrás, o encontro entre amigos me fazia pensar quando foi a última vez que um esbarrão espontâneo daqueles havia me acontecido, despretensioso como aquele parecia ser, simples mas poderoso, que me fizesse alterar a rota a ponto de aceitar de supetão um convite presencial para jantar ou lanchar na casa de um amigo. Não costumo desviar assim da minha rotina, hoje em dia é tudo tão combinado. Os meninos amigos andavam devagar, pareciam animados para comer o cachorro-quente preparado pelo pai de um deles. Diminuí o passo para acompanhar o raciocínio dos falantes sem grandes interferências. Ouvi que achavam estranho não haver Smart Fit no Catete, que ali as academias de bairro sobreviviam incólumes ao apetite voraz do capital. “O Catete resiste!”, disse o mais baixo, achei graça. Eles conversavam sobre trivialidades e percepções variadas, e eu os acompanhava involuntariamente pelo mesmo caminho.

O que andava à direita, mais alto, cujo pai em casa fervia salsichas, sacou do bolso o celular e começou a mostrar fotos de quem depois entendi ser Mariana, uma jovem pela qual o menino estava muito interessado. Ele comemorou com um sorriso no rosto: fazia exatos dois anos desde que Mariana o adicionou no Facebook – on this day. Pouco se falaram desde então, porém, ela tinha namorado. O menino contava angustiado ao amigo como Mariana não saía de sua cabeça, ele não sabia mais o que fazer. Eu não consegui descobrir como ele e a jovem haviam se conhecido, tampouco vi a foto de Mariana, mas entendi que a menina posava na Praia Azeda, em Búzios, e era muito bonita. Mais bonita que a própria praia “que é lindona”, disse ele. O apaixonado ouvia do amigo que esquecesse a “mina”; ele concordava diante do fisgar da impossibilidade. Eu, ali atrás, torcia para o casal improvável, mas o menino não tinha coragem sequer de puxar assunto com Mariana nas redes sociais – um millennial exemplar, a falta de iniciativa nada tinha a ver com respeito pelo namoro alheio.

O amigo e eu ouvíamos as lamentações do menino, eu mais condescendente me identificava com as insatisfações. São muito difíceis essas fantasias com as quais a gente não aprende a lidar, elas brotam de um lugar onde só se descansa diante do entendimento de que a vida é traiçoeira e não dá trégua, e que às vezes a complacência é o melhor caminho para buscar um pouco de paz, mesmo que um punhado escasso. A essência do sonho é ser sonho, não é mesmo? A melancolia só sossega com a aceitação, eu queria ter dito a ele. Mariana estava distante e assim estaria, ponto final, não há consulta ao horóscopo que pudesse trazer sossego. O menino lamentou que Mariana não estivesse inscrita no app Sarahah, assim poderia desaguar um pouco de suas inquietudes, mesmo que acovardado. O ouvinte, com o tom de voz mais elevado, lembrou que o caso do amigo parecia “o do Gabriel”: “Lembra, eu fiquei naquela ‘nóia por ele, sem ele saber, e nunca iria rolar nada, sem chances”. Entendi que um deles era gay e já havia estado, como todo mundo, plantado em terra morta, seco, sem que nada brotasse; talvez Gabriel fosse heterossexual, um amigão, brother, parça.

A esta altura, nós três já estávamos na boca da rua da Laranjeiras, ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Glória; o cachorro-quente já quase pronto, pensei, pai esperando filho para comer sem saber que o lanche teria companhia naquele início de noite. Dois meninos, Mariana, eu-ouvinte, Gabriel, tudo tão banal. O Catete estava acabando, e o avançar de Laranjeiras começava a limitar meu interesse à medida que eu distanciava do meu percurso original. Escolhi abandoná-los sem despedida. Meia-volta em direção à Praia do Flamengo, meu destino real, onde pretendia tomar um ou dois chopes desacompanhado. A uma quadra do bar, já na Praia, esbarrei em um conhecido, desses que a gente gosta sem motivo aparente ou concreto. Ele saía da academia, uma das duas Smart Fits do Flamengo – percebem o abismo de poucos metros entre o Flamengo e o Catete? -, e me perguntou se eu gostaria de tomar um cerveja, em qualquer boteco por alí. Neguei instantaneamente, disse que tinha um compromisso, minha boca respondendo no automático. Meu cérebro não teve tempo de pensar, escolheu mexer os lábios. Um encontro assim, de supetão? Segui para casa, de volta para o meu Catete, a cabeça embaralhada de ideias. Comprei um latão e um cachorro-quente na esquina da Corrêa Dutra.

Sinais

Sempre quando ouço alguém falar do “Norte”, assim, na trivialidade do comércio carioca, desconfio de que a referida região seja, na realidade, o Nordeste. Minha avó, nascida em Pernambuco, comete o mesmo erro geográfico – ou tem o mesmo costume nordestino (seria nortista?). Acho curioso.

Enquanto registrava meus pacotes de cotonetes, a atendente do caixa da farmácia reclamava irritada da operadora de celular, dizia que o bônus concedido mensalmente, do qual ela desconfiava não ser realmente gratuito, de nada lhe adiantava já que não permitia ligações para o Norte. Eu estava em silêncio, meus pensamentos completamente de acordo com as reclamações da moça; ela muito pertinente, resmungava à colega no compasso de bip-bips do leitor de código de barras. Não era daquelas farmácias que o cliente precisa registrar os produtos numa cesta numerada antes de seguir para o caixa, tampouco solicitar a atendente para pegar na vitrine trancada os produtos mais caros, como cosméticos, cremes para espinha, lubrificantes, protetor solar. Não gosto desse formato de loja.

Eu não usava cotonetes há um dia, algo impensável para mim. Me parece que o uso diário não é hábito saudável, mas não me importo. Só deixo de usá-los diariamente quando tiver esfregada na minha cara a fatalidade comprovada das tais hastes flexíveis. Talvez nem assim. Caso o pior aconteça, aos amigos mais próximos, peço que registrem na minha lápide: “morreu de cotonetes, faria tudo outra vez”. Agora que não fumo mais, que caminho a passos mais lentos para o fim da coisa toda, sinto-me mais aliviado em cravar as pontas de algodão no ouvido. O que seria do ser humano sem vícios, sem hábito destrutivo? Tão nojento é quando alguém senta próximo a mim, de perfil, e uma nesga de cera fica visível a olho nu, emergindo do buraco negro por onde passa o som. Imagino a namorada dando um beijo no pescoço, um cheiro, subindo carinhosa até o ouvido e… ingrata surpresa. Me embrulha o estômago.

A atendente seguia reclamando da operadora de celular nestes segundos que o texto alonga demais. Eu, mais ansioso para limpar os ouvidos que para acender um cigarro – hábito do qual já estou livre há quase dois meses -, perdido no Norte e na possibilidade de Nordeste, saí da farmácia muito concentrado nos meus pensamentos e lembranças, quando de repente ouvi alguém gritar “e aí, Fredão!”. Eu levantei a cabeça buscando meu interlocutor, olhei para um lado, para o outro, até avistar um conhecido, já lá na frente, seguindo caminho e acenando rapidamente para mim. Retribuí. Fredão. É engraçado porque, algumas pessoas, poucas delas, me chamam de Fredão sem me conhecer. É como tomar uma liberdade que não as dei, mas que gosto muito que roubem de mim. A primeira pessoa que me chamou de Fredão foi minha avó – e assim o faz até hoje – a mesma que das raízes do Nordeste evoca o Norte. Depois dela minha mãe, às vezes, quando não me chama de filho ou filhão – ou Fred, quando é para falar algo da esteira das obrigações. Ninguém mais do meu convívio cotidiano. Assim, Fredão ficou restrito a um círculo íntimo, minha avó e mãe, e ao mesmo tempo a poucos que pouco me conhecem mas já me engrandecem com um “ão”. Quando alguém me chama de Fredão, nos encontros e esbarrões, eu acho carinhoso – mesmo que não o seja. E essa história toda começou com minha avó. Foi aí, nestes segundos das coisas, já atravessando a rua, que eu tive certeza, pelo menos pra mim, que a atendente do caixa da farmácia se referia ao Norte, só que ao Norte da minha avó. Sinais. Vida que segue.

Rapidinha 2

Faça chuva ou faça sol, a moça baixinha que malha no mesmo horário que eu não falta dia sequer. Pega pesado. Ela é muito querida na academia, acho graça. Eu, que só abro a boca para cumprimentar os funcionários e o rapaz que nunca tirou o boné – entrou magrinho e hoje está um touro -, passo os intervalos entre as séries acompanhando com os olhos a fauna da academia. É tudo muito doido. Dia desses foi aniversário da baixinha, ela levou uma caixa com pedaços de bolo já fatiados e embalados em papel alumínio para que “o pessoal” pudesse comer depois. Tudo com muito cuidado, estão ligados? Imagino ela confeitando o bolo na noite anterior, beliscando sem culpa um pouquinho da cobertura – afinal, é aniversário dela. Saiu distribuindo por entre a floresta de aparelhos até o bolo acabar. Todo mundo cantou parabéns e ela sorria-serelepe. Eu, de longe, fiquei sem bolo e me contive em olhar para a muvuca esboçando sorriso de quem é solidário à festa. Eu estava ouvindo música e pensando como é estranho alguém “ser querido” na academia, um lugar feito pra estar, tão difícil de “ser”. Sinto-me nada na academia. Sinto-me estando. A moça foi tirando fotos, agradecendo as felicitações, corou com o parabéns, abraçou os instrutores. Ela é tão querida. Que loucura. Me imagino levando um bolo para a academia, as pessoas que eu não conheço cantando parabéns. É como algo de outro mundo, um mundo completamente diferente do meu, ali ao lado, no supino, na fila do bebedouro, todos os dias. Fico pensando porque o rapaz nunca tirou o boné. Tudo muito doido.

Rapidinha 1

A saudade escapa pelo basculante do 503 e percorre todo o corredor até invadir o meu apartamento, entra sem bater. O cheiro do refogado é a casa da infância de todo mundo – alguém há de negar? O perfume da comida da vizinha me deixa com saudades de muitas coisas. Dia desses eu pensei em elogiar o cheiro que sai do apartamento dela, tudo parece ser preparado com muito cuidado. Eu ouço o barulho de colher que vai da panela diretamente para a beirada da pia para que a parte suja de comida não entre em contato com nada – certamente ela vai usar mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez eu sinto saudades. Sempre aos sábados, quando eu costumo estar disponível para todos os cheiros e sons ao redor. Ela acabou de passar por mim no corredor, mas eu não disse nada. Talvez no próximo sábado. Uma coisa é certa: o cheiro do refogado é a casa de todo mundo.

Lúcio, morto (Pt. 1)

Quando Lúcio tombou morto na nossa frente, perplexos, levamos tempo para entender a imprevisibilidade da morte. Lúcio caiu como uma árvore serrada na base, sequer dobrou os joelhos. Valia tão pouco, diferentemente da madeira reencarnada em armários e mesas e cadeiras que ele nunca teve, que talvez por isso nenhum de nós tenha tocado-lhe o corpo num primeiro instante. Estávamos bêbados sentados no gramado da praça como fazem os adolescentes nas praças. Lúcio estava bêbado como escapam alguns de uma vida que insiste em ser muito difícil, guardava carros no Centro da cidade. Vestindo apenas bermuda e chinelo, magro e sujo no auge de seus 20 anos de idade, intrometeu-se na nossa roda de amigos e perguntou se algum de nós ousava duvidar de sua aptidão para beber. Tinha malemolência na voz, falava sorrindo, sorriso torto, muita simpatia. Disse que tomaria a metade restante da nossa garrafa de vodca de uma só vez, como num gole rápido. Já estava visivelmente bêbado. Trêbado. Alguns duvidaram, não era possível. Outros se negaram a dividir a bebida com ele. Entre nós, sentados, ouvi sussurros de quem se incomodava com a presença de Lúcio, parado ali, em pé, sem nada a oferecer. Outros, com os quais eu mais me identificava, o encorajaram a cumprir a promessa. Vira! Vira! Vira! Com o consentimento de alguns amigos, meus cúmplices, entreguei-lhe a garrafa numa sentença de morte, e ele não hesitou em entorná-la garganta a dentro. O líquido relutou em aceitar o destino de algoz tentando escapar desesperado pelos cantos dos lábios em direção à pouca barba de Lúcio. Como rios que abrem caminhos, parte do líquido escorria brilhante pelo seu pescoço, corria rápido para o peito e parava. Todo resto foi direto para o estômago do flanelinha. Dito e feito. Sem cara feia, ao contrário de nós, Lúcio enxugou a boca com o antebraço tatuado: Maria, estava escrito. Ele chacoalhou a cabeça e sorriu. Gosto de pensar que sorriu para mim. Tinha um sorriso bonito apesar de faltar-lhe um dente ao fundo da boca. Eu não tive tempo de retribuir. Deixando a garrafa vazia escapar de sua mão, deu um passo para trás e caiu de costas no gramado com a expressão serena de quem nunca teve a chance de experimentar o pavor das reflexões mais profundas sobre a morte.

Naquela madrugada, há mais de dez anos, meus amigos e eu levantamos assustados e ligamos para a emergência. Na praça, ninguém além de nós. Já passava das duas da manhã. Fui o primeiro a tentar acordá-lo, não lembro de medir sua pulsação ou verificar se ainda estava respirando. Bati repetidamente no rosto pálido, massageei o peito e cheguei a levantar suas pernas na esperança de que um fluxo mágico de sangue pudesse corar Lúcio, dando-lhe uma segunda chance. Pensei em enfiar algo salgado entre seus lábios para fazer levantar a pressão que deveria estar igualmente derrubada. Ninguém tinha nada para comer. Eu já havia desmaiado por causa de alguns excessos, mas sentia que aquela situação estava além do que nós, adolescentes bêbados de praça, havíamos vivenciado antes. Dois dos meus amigos foram embora apressados. Não deveríamos estar largados ao deserto de uma madrugada fria. Que encrenca. Lúcio também estava frio. Voltei ao chão e levei sua cabeça ao meu colo numa espera eterna pela ambulância. Tinha os cabelos negros cacheados e maltratados. As lembranças da delegacia, da minha mãe acordada chorando, gritando comigo, dos meses subsequentes em que a morte de Lúcio assombrou a mim e meus amigos não são muito claras na minha cabeça. Não sei ao certo até que ponto toda a narrativa dos dias seguintes àquele momento foram alteradas pelas emoções confusas de um passado que sempre retornou angustiado.

Meu primeiro encontro com a morte aconteceu pouco mais de dois anos antes de Lúcio morrer, quando minha avó escorregou no banheiro e bateu a cabeça na bancada da pia. Ela tinha 80 anos e morava com meus tios em um apartamento amplo, perto da praça onde matei Lúcio. Desde que o diabetes começou a ceifá-la lentamente, minha avó era cuidada por uma senhora apenas uns cinco anos mais jovem, o que sempre me incomodou. Como uma velha poderia cuidar de outra velha? Eu comentava com minha mãe que Vera não daria conta de fazer companhia e dar os remédios a outra velha, ainda mais velha que ela, mas minha mãe sempre dizia que eu não deveria me meter na vida dos meus tios. Eram eles que pagavam o salário de Vera, e, na cabeça de minha mãe, se era assim é porque Vera havia de ser uma boa cuidadora. Além disso, minha mãe tinha pouca afeição pela minha avó, mãe do meu pai. Enquanto foram casados, a velha vivia a resmungar pelos cantos dizendo que minha mãe afastava os netos da família. Nunca procurei entender isso.

Numa noite qualquer, Vera foi vencida por um sono pesado e minha avó, cheia de limitações de velha, levantou-se da cama alta em direção ao banheiro. Foi Vera que, no dia seguinte, fez questão de limpar o sangue no piso. Eu lembro de ter ido à casa dos meus tios e encontrá-la desesperada, mais velha do que o normal, chorando e passando pano no chão. Meus tios tentavam em vão levantá-la, que só esfregava e chorava e esfregava e chorava. Meu pai não estava presente. Ninguém o via há uns cinco ou seis anos. No velório, minha avó estava inchada, coberta de flores brancas e amarelas. Além da falta de vida, um véu fino a separava de nós. Eu não lembro da expressão da minha avó, morta, como lembro da de Lúcio, sereno, tranquilo. Na semana seguinte, meus tios me deram um pingente de santa Rita de Cássia que minha avó guardava na gaveta do criado mudo. Não tinha herança a ser distribuída entre a família, ganhava uma pensão medíocre deixado pelo meu avô, sujeito que nem cheguei a conhecer. Ela vivia às custas dos meus tios. Eu não esperava nada, não queria nada. Apenas guardei o pingente no fundo da minha gaveta, desta vez do meu criado mudo, como um respeito pela religiosidade de minha avó.

Continua…

Stalker, assim, do dia a dia

As pessoas seguiam concentradas em seus próprios ritos de normalidade. O homem com microfone na porta da loja de utilidades anunciava bolsas da moda para “conservar sua marmita com elegância”. Ele repetia: “para conservar sua marmita com elegância”. Ele repetia. Custavam 12 reais. O menino da banca de jornais sorria seu sorriso generoso e a moça entregava panfletos de comprador de ouro, as unhas imensas e coloridas, desenhadas com muito esmero. A nova filial das Casas Pedro era sucesso; a Rua do Catete estreitava-se em camelôs, coisas vagabundas inutilizavam as calçadas dando cor e movimento ao chão. Na porta da loja de doces, um menino pedia para que lhe comprassem uma caixa de paçocas. Maio estava acabando em seu devido tempo e tudo estava posto em seu devido lugar. Quase tudo.

Faz dois anos, Rafaela.
ou Larissa,
Júlia
ou Marquinho ou Thiago,
Luisa, Renata, Marcelo, Gustavo, Guilherme, Mariana ou Gabriela,
Luiz Felipe,

Escrevo sobre aquele dia do qual você provavelmente nunca vai lembrar. Eu me lembro muito bem. As pessoas seguiam concentradas em seus próprios ritos de normalidade. Menos eu. Tocava “Nine out of ten”, do Caetano, na banca de jornais. O menino sorria generoso enquanto lhe dava o troco das revistas que você havia escolhido. Você ainda compra revistas? Dois anos são suficientes para estremecer qualquer mercado editorial. Eu estava logo atrás de você, sorte a minha ter decidido comprar cigarros naquele exato momento – te descobrir me fez sentir alive, vivo, vivo, muito vivo. Você saiu da banca sem me perceber e eu já pensava em nós dividindo o sofá para discutir os assuntos das revistas; falaríamos sobre política, debateríamos a Veja ou a Piauí ou a Ana Maria, cruzaríamos as palavras com caneta Bic – ou lápis, caso você preferisse. Eu te segui até você entrar nas Casas Pedro. Vi que você esbarrou na moça que entregava panfletos de comprador de ouro e se desculpou muito gentil, sorriso não tão sincero quanto o do menino da banca, mas um sorriso só seu. Comprou temperos a granel, creme de leite fresco, uma caixa de suco de uva e pão sírio. Foi para casa, eu te segui até o seu portão.

Eu quis tanto conversar com você, Rafaela.
Ou Gaia,
Alice ou Bernardo ou Joaquim,
Flávia, Bárbara, Bruno Rodrigo, Eduardo, Carolina ou Viviane,
Henrique,

Lembrei também daquilo tudo que nunca aconteceu depois daquele dia que só eu lembro. Daquela vez que estávamos brigados e você não me avisou que eu estava com uma meleca presa no bigode na festa da Mayra. Lembrei também de você dizendo que pasta de dente tem que ser branca, senão não limpa direito. Quando você me traiu no Vietnã e eu te trai em Macaé, e quando nós dois nos perdoamos. Quando você me abraçou no dia em que meu cachorro morreu e quando nós ficamos perdidos em Luxemburgo. Lembrei que eu comprava seu chocolate preferido e que você me deu um pote mofado de whey protein que comprou na OLX. A gente riu tanto nesse dia. Tudo veio assim, de repente, na minha cabeça. Como quando a gente perdeu a aposta para o Luciano e a Maísa e tivemos que entrar no clube Bogari. Você não se lembra, mas eu já sinto saudades.

Beiras (Pt. 1)

Evandro desceu a escada estreita de um desses motéis de beira de rua onde provavelmente nunca se fez amor. Na placa de entrada, acima de um portal recém-pintado de branco, lia-se ‘quartos para cavalheiros’ em delicadas letras finas e verdes, uma tradução generosa para o que se enconde nas entranhas desses sobrados antigos onde aliviam-se os brutos, os escamosos, os frágeis, os necessitados e os viciados. Mais honesto fosse, talvez, se os quartos estivessem à disposição de cavaleiros vindos de longas distâncias, errantes e pobres, viajantes cansados montados em cavalos magros, exauridos, mas cheios de esperança. Nunca cavalheiros. Evandro, sem camisa, acendeu um cigarro e sentou-se no último degrau que dava para a calçada onde, tarde da noite, somente um velho com a barriga inchada deitava concentrado em sua convalescença de perna com pouca circulação. A lua estava linda. Evandro contemplava o céu com o olhar perdido na finitude do alcance de sua visão, o calor pressionava o peito por onde a fumaça expandia-se e escapava pela boca, os poros brotavam suor de fevereiro, quarta-feira de cinzas. Deserta, a rua Petrônio Alencar ressoava o latido de um cachorro invisível, cujo som era interrompido pela tosse do mendigo ao lado. A lua, cheia e soberana, pendurada no topo do céu, brilhava intensa e gentil, o brilho era tão forte que o homem chegou a pensar no sol escondido logo atrás da lua, colado, motivo de tanto calor. Pensou na morte trágica de São Jorge, assando preso dentro de uma armadura de metal pesado; o dragão feliz por ser noite de caça, não de caçador. Para Evandro, um homem sentado no degrau de um motel barato, todo dia é dia de caça, mesmo uma quarta-feira de cinzas.

As noites na rua Petrônio Alencar eram sempre silenciosas e mal iluminadas, exceto quando alguma confusão entre michês, putas ou travestis e seus clientes irrompia nos becos escuros. Vez em quando também havia batidas policiais num bordel na esquina com a Rua do Trindade, nada que Túlio Prata, sargento aposentado da PM, homem respeitado por gente de dentro e de fora da lei, não resolvesse de mãos molhadas. Fora isso, nada atrapalhava a calmaria das noites da Petrônio. De dia uma via repleta de lojas de materiais de construção, à noite uma via crucis para quem à luz não pode ser maldito. O último burburinho que alvoroçou a região foi o assassinato de um homem chamado Lino Borges, advogado, cujo corpo foi encontrado numa manhã de terça-feira, há cerca de um mês, deitado numa poça de sangue. Dizem que o semblante do homem estava tranquilo apesar das três facadas afundadas na barriga. Nos jornais, dia seguinte, as páginas policiais tratavam o caso como mistério, ainda seria investigado. A verdade é que o homem frequentava o hotel para cavalheiros há mais de dois anos. A família não sabia e, envergonhada, se esforçou para abafar o caso. Que vergonha seria se a mulher e os filhos do defunto soubessem que seu amado Lino pagava 30 ou 50 reais para acender um pouco a vida com Evandro. Dependia do combinado, mas, não importasse o valor, Lino pagava por brutalidade, por algo mais do que masculino. Na noite em que Evandro não se encontrava, no entanto, o homem foi esfaqueado. Que azar o de Lino. Na espelunca de alugar quartos ninguém tocava no assunto. A mancha de sangue seco está lá, não mais que a trinta metros do costumeiro ponto de encontro. Alguns contam que o pai de família se desentendeu com um marginal ao combinar sexo por um bocado de pó.

Continua…

Aniversário, que loucura

Passei pelos vendedores de memórias que enfeitam e conturbam o caminho entre a Glória e a Lapa. São homens e mulheres que dispõem objetos sem alma em panos encardidos na calçada, aparentemente sem valor algum, objetos sujos, usados, mortos. Telas indiscutivelmente mal pintadas, trecos, louça. Bonecas assustadas, potes de cosméticos, peças eletrônicas, molduras de um passado que não pertenceu aos vendedores de aparência anestesiada – alguns transpiram malandragem. Eu caminhava do Catete até desembocar na Rua da Lapa, onde estão concentrados esses homens e mulheres, pensando dentro de minha própria bolha, ruminando as dúvidas de quem assiste de longe ao mercado de memórias impertinentes. Poucas vezes vi alguém demonstrar interesse por algum objeto – não ousaria chamá-los de produto, um ou outro jovem em corpo de velho buscando saber o preço de um livro de carcaça ainda mais velha. Não custaria mais de três reais, imagino. Olhei de relance para a capa de um DVD da Diana Krall, ao vivo em Paris; é tudo tão estranho, sapatos que não formam par, calcinha de criança, tufo de peruca. Fico intrigado, mas não o suficiente para interromper o percurso, diminuo o ritmo, no entanto.

Vou diminuir o ritmo:

É sábado, meu aniversário, exatamente quando eu nasci, só que 27 anos depois. Sigo caminhando até a Rua da Lapa para resolver o que tenho a resolver. No caminho, vejo os objetos organizados à própria sorte no chão onde piso, onde as travestis pisam, ondes os homens passam afrouxando a gravata, onde o velho escarra, onde a moradora de rua senta para amamentar. Preciso controlar o ritmo. Um dos vendedores resplandece ao sol, deitado, a cabeça apoiada numa trouxa, ele lê um livro concentrado, o corpo sem camisa resiste ao calor, não derrete. Os ‘produtos’ estão lá. De onde teriam vindo? Será que alguém sente saudades de algum daqueles objetos? Daquele velho camafeu, talvez? Seria ele lembrança de uma avó doente? De uma mãe igualmente morta? Uma relíquia desgostosa de um casamento ingrato? Bodas de prata? Eu sinto saudades. Hoje, completo 27 anos e tenho saudades das coisas que não existem, que não tiveram alma, que carecem de alma como todos aqueles objetos. As saudades das quais me refiro não tratam do passado. Este, por mais que fisgue o peito de tempos em tempos, está bem acomodado nos momentos sem retorno, está lá, no lugar das coisas que não são eternas. Eu falo que tenho saudades das coisas que escolhi não viver, de tudo que poderia ter acontecido e não aconteceu. Essas saudades, das quais estou me repetindo, por favor, não confundam com arrependimentos – deste mal não sofro. Digo que, infelizmente, é inevitável pensar nas pessoas que eu poderia ter conhecido, nos efeitos das mensagens que eu poderia ter enviado, nos outros ofícios dos quais eu poderia ter feito dinheiro, nos olhos que eu deixei de olhar nestes 27 anos, nos nãos. É inevitável – e não é ruim, mesmo que um pouco melancólico. Os objetos, no entanto, diferentemente das minhas saudades, tiveram um passado, já saborearam o gosto de ter alma. Têm muito mais forma. Não têm passado as saudades do que não aconteceu.

Sim, eu sei que ainda sou jovem. Preciso diminuir o ritmo e as vírgulas, deixar tudo mais fluido.

Tento me livrar das pretensões de sábado, tarefa muito difícil. Os sábados, sempre pretensiosos dentro de minha cabeça, são os dias nos quais tento seguir a mesma rotina quando dou sorte de não trabalhar – nada mais terrível do que trabalhar aos sábados. Acordo cedo; sempre acordo cedo para ter a noção de que o sábado é longo e poderoso. Tomo café da manhã em alguma padaria e volto imediatamente para casa, quero descansar às luzes claras, curtir esparramado no sofá, pés pendendo pelos braços macios sem encostar no chão. Isso até a hora do almoço, quando o alvoroço do estômago me conduz ao restaurante. Descanso até umas 18 horas, até começar a segunda parte do meu dia. Se é um sábado chuvoso, vou à academia. Um sábado soberano, como devem ser todos os sábados, ando de bicicleta ou corro no Aterro, sempre no Aterro – energizo-me. Sob o horário de verão, atraso para às 19. Depois disso, retorno e começo a me preparar mentalmente para a terceira parte, a madrugada, pretensiosa e longa, larga, com ar pesado de encher pulmões ansiosos. Os sábados, sim, são maldosos como falam das sextas-feiras.

Quebrei a rotina, ainda era bem cedo quando eu caminhava até a Rua da Lapa.

Os objetos mortos estavam por toda parte, eu só precisava resolver o que tinha a ser resolvido, trajeto curto entre o Catete e a Lapa, porém, no meio do caminho, me vi perdido num cemitério de objetos mortos sob os olhares displicentes de seus homens e mulheres, seus donos mortos, dinheiro para fazer uma fezinha, se embebedar, vestir a criança com fralda, pagar por sexo. Ainda preciso diminuir o ritmo. Escolho parar. Finjo interesse, olho para as tranqueiras – visão de raio-x. É meu aniversário, que loucura, 27 anos, é muito cedo, estou olhando para porcarias organizadas no chão da Rua da Lapa. Penso em comprar alguma coisa. Ao lado, um cão tenta se aproveitar da doçura de uma cadela, ela o coloca em seu devido lugar, rosna, ele cai fora. Penso na Elza Soares e acho graça. Um vendedor se aproxima, o que estava deitado em berço esplêndido, ele não derrete ao sol do sábado.

– E aí, irmão, vai querer alguma coisa?
– Tô olhando, obrigado.

Eu parei, mas não consigo diminuir o ritmo, estão percebendo? Vou tentar mais uma vez:

É meu aniversário, completo 27 anos neste sábado de 25 horas de vida. Ainda não corri no Aterro como faço diariamente, mas sinto-me energizado. Os objetos mortos à minha frente não têm energia, mas são inofensivos, mortos. Repetição. Estou cheio de vida. Pergunto quanto custa um dos objetos: 10 R$. Compro por R$ 5. Fechado. Dou alma àquele objeto. Ele é meu, não está mais morto. Volto para casa.

É a última:

Sigo meu percurso de volta para casa, eu e meu objeto, não estou sozinho. Vou pensando no que eu gostaria para um novo ano, o que seria bom que acontecesse neste caminho aos 28. Uma velha me pede as horas. Eu respondo feliz porque, como todos sabem, eu adoro as velhas e elas me adoram. Continuo. Neste novo ano, eu me desafio a dar mais vida às coisas mortas, quero dar menos espaço para as saudades descritas ali em cima. Eu e meus irmãos, alguns de vocês, os que já conquistei, quero estar junto, dizer menos nãos. Deixar as coisas fluírem, conhecer o lado bom – e só o lado bom – da complacência. Quero dar vida às coisas mortas, vocês (e as corridas no Aterro) me dão energia de sobra para isso. Quero dar vida às coisas prematuras, pré-uterinas, mortas. Que loucura.