Cruzo a esquina da Ouvidor com a Quitanda, um homem está deitado no chão, semimorto. Grita inaudível, sem voz, mas as veias grossas do pescoço ainda encontram força para saltar a carne inchada de álcool, suja; e são elas, as veias, que ilustram os gritos. Nada escuto. O corpo, deitado, tem a pele infértil dos homens entregues ao álcool — é como um terreno deserto, árido, onde os pelos não nascem mais, envenenados pela bebida que circula por elas, as veias. Ele baba, lacrimeja seco, sofre. A bermuda à altura dos joelhos revela seu sexo tornando-o ainda mais desgraçado, mais imundo, mais corpo morto, mais sem alma. Ele grita e olha para mim; não escuto nada.
A rua está deserta, o Centro do Rio de Janeiro, um dos meus lugares favoritos no mundo, está deserto, não há vida nas ruas; tampouco há sopro na vida maldita das esquinas, becos, cinemas e vielas. Nada resiste ao novo estado das coisas, nada existe como existiu há algum tempo — e antes disso. Nada haverá de existir, um dia. Eu sigo caminhando, o céu está azul, sinto-me muito vivo, no peito um desejo enorme de que as coisas voltem a ser o que eram, desconcertadas como eram, defeituosas, imperfeitas, mas nunca sufocantes, genocidas, pandêmicas. Não estou sozinho. Estou acompanhado por um homem bêbado, um homem-peixe que busca respirar dentro de um balde ou no fundo de um barco, bem ali, na rua do Ouvidor com a Quitanda, onde tantas coisas já existiram, onde eu tanto já existi, onde tudo hoje morre lentamente. Onde hoje sofre um homem.
É domingo, faz muito calor, a máscara intensifica o calor, começo a sentir meu próprio hálito. Caminho pelo Centro. Copacabana, Ipanema ou Leblon, para mim, nunca foram opções. Tampouco a Lagoa, cujas lembranças de quando eu fazia faculdade não me agradam. O Aterro tem ficado cheio, mesmo na melhor hora, por volta das 18h. É por isso que eu caminho pelo Centro, um dos lugares mais bonitos do Rio de Janeiro, onde hoje aglomeram-se muitos homens e mulheres e crianças e cães, nas calçadas, em cabanas de lona e pau. Onde hoje muitas pessoas tocam vidas moribundas, vidas mortas como a do homem que agoniza a poucos passos de mim. Eu olho para ele, ele retribui o olhar, não sofro. Sinto como se o sofrimento fosse lugar-comum e eu, como numa bolha, estivesse acostumado a todo o horror — mas imune a ele. Sinto-me privilegiado. É como se o horror nunca fosse horrível o suficiente.
Caminho de volta para casa. Tudo vai ficando mais higiênico, mais policiado, mais sofisticado, mais estado, mais iniciativa privada. Sinto que pertenço a tudo isso por um acaso, por uma roleta de Deus. Que besteira. Encontro uma amiga, ela passeia com um cachorro enorme preso à coleira. Um jovem gordo caminha com a máscara ao queixo; uma mulher muito linda pedala numa bicicleta alugada. Passo por um prédio com vidros espelhados e encaro meu reflexo aprumado; o porteiro abre o portão como se eu devesse entrar, como se eu combinasse com quem mora ali — ele olha para mim com o olhar da possibilidade. Não moro ali. Tiro uma foto da minha própria imagem, penso em postar, em mostrar para os outros. Posto. Sigo meu caminho, estou chegando em casa.
Entro no meu apartamento e vou direto para o chuveiro; escovo os dentes ainda dentro do box, como gosto de fazer, e sinto a água forte no meu rosto — sinto também um ligeiro gosto de água. É o Rio de Janeiro. Teria morrido sufocado o homem-peixe fora do aquário? Estaria ainda chorando o desespero? Ainda vivo? Morto? As notificações constantes do meu celular interrompem a música que toca enquanto me banho — certamente há comentários na foto postada. Alcanço a toalha e pego o celular. Um bocado de likes. Seco-me, deito na cama refrescado; meu corpo de homem-peixe no mar azul. Minha cama mar azul. Penso no homem bêbado, deitado no chão do Centro no Rio de Janeiro; não sofro.
É domingo, o dia está lindo, o mar imagino estar azul, talvez mais ainda do que minha cama, cheio de peixes. O calor, dentro do meu apartamento, não faz verão. Faz outono como lá fora também deveria fazer. Olho as notícias no celular, leio sobre a situação dramática do estado do Rio, sobre a fome e a miséria, sobre tudo o que é conhecido e hoje em dia está ainda maior, como um bichano desgovernado. Compartilho uma dessas notícias em um grupo de WhatsApp, digo aos meus amigos que, realmente, estamos fodidos. Estamos fodidos? As pessoas estão fodidas, não está fácil. Compartilho o cibersofrimento e todos ali, no grupo, sofrem um pouco. Mais notificações me interrompem no celular. São likes na foto espelhada. Dez, vinte, trinta, quarenta likes – sofreria ainda o homem sem alma? Não sofro.
Está realmente tudo muito fora do lugar.