Rapidinha 4

Eu havia tomado banho há pouco tempo, por isso decidi apenas lavar os respingos de água preta que estavam por secar entre os pelos das minhas pernas. A chuva começou quando eu ainda esperava a vez na fila do mercado; os clientes foram ficando ouriçados, pegos de surpresa, despreparados, escutei um ou outro lamento – a jovem do caixa perguntou afirmando: “Ih, tá chovendo?”. A criança, sem galochas, choramingou querendo biscoito – a mãe negou. É o incômodo da chuva. Eu tomei o caminho de volta para casa tensionando os dedos contra o chinelo, vã tentativa de conter o resvalo no calcanhar que eleva a sujeira do chão para as pernas. A chuva faz com que todos os desprotegidos abaixem levemente a cabeça e apontem os olhos para cima, sobrancelhas contraídas, óculos e cabelos inconvenientemente molhados. A distração com as poças. O mundo sob a perspectiva da inconveniência.

Cheguei em casa molhado, larguei as compras na cozinha e tratei de lavar embora os germes sempre prontos para comer a nossa carne por dentro das feridas. Pensei em tomar banho, mas decidi apenas lavar as pernas e pés. Foi quando eu lembrei de você. Faz tanto tempo. Você me chamava de nojento quando eu acordava apressado para ir ao trabalho e apenas molhava a cabeça na pia para assentar o penteado. Não daria tempo de tomar banho, você sabia. Nesses dias eu sempre voltava para casa com o cabelo mais oleoso, mais grudado à cabeça, feito vítima de sua praga matinal. A gente ria e eu ia direto para o banho. Eu ainda demoro no banho, as coisas não mudaram muito.

Eu sentei na cama para passar a toalha por entre os dedos dos pés, uma toalha muito felpuda e macia, um bocado cara – aprendi com a minha irmã que toalhas, assim como edredons, têm que ser da melhor qualidade. A chuva não havia diminuído milímetro sequer, e logo imaginei a rua do Catete submergir em sua própria complexidade, transeuntes agarrados às grades do Museu da República na Silveira Martins. Minha janela fechada tornava a perspectiva do mundo mais triste, mais centrado em mim, como a onda do vizinho que fuma todos os dias um baseado sagrado. A janela fechada também impossibilita o cigarro e costuma encurtar a distância do pensamento. Meu pensamento haveria de estar curto, bloqueado pela janela. Justamente por isso eu estranhei pensar em você, tão longe. É o incômodo da chuva.

Estranho lembrar de você logo num dia como esse. Antes, bastava um final de semana ensolarado para que fossemos à praia, você também detestava a chuva; eu achava meio estranho seu excessivo prazer num bronzeado. Eu sequer tirava a camisa, você lembra? Ainda não faço com tranquilidade. Os dias de sol forte não costumavam ser os meus preferidos e eu tampouco gostava de ir à praia, mas sua companhia bastava. Você amava a saturação das cores do céu, eu preferia os tons pastéis do fim de tarde. Hoje chove, e é desse cinza tão escuro que essas memórias vêm à tona. Talvez seja o meu cabelo molhado. A chuva ainda está caindo lá fora e eu, depois de tanto tempo, ainda penso em você.

Pela janela

Do alto da minha janela, no quinto andar, eu vejo meu vizinho preparar um cigarro de maconha com muita delicadeza. Ele mora no prédio ao lado alguns andares abaixo de onde moro. A falta de cortinas dá um tom pouco privado à vida dele — um micro big brother visto que a cama encosta na parede logo abaixo da janela, como se ajoelhado no colchão ele pudesse dobrar os braços e descansar a cabeça no batente olhando para o mundo lá fora. Ou olhando para mim aqui no alto. Todas as noites meu vizinho senta de pernas cruzadas na cama, abre o que imagino ser um estojo e distribui a erva sobre o papel com muito cuidado. Enrola, aperta, enrola novamente, passa a ponta da língua e lacra o baseado com um pouco de saliva. Acende. Eu, aqui do alto, viajo com ele.

Enquanto a maconha queima o peito do meu vizinho, lá embaixo, eu olho pela janela sem a pretensão de querer desvendá-lo; passo o olho, alterno entre o céu por vezes estrelado, a mata, os prédios; penso que a janela é o que há de mais sagrado numa casa porque é através dela que a gente pode ver o mundo sem sentirmos culpa pelo cansaço, sem o esgotamento de tudo é pesado na vida. Quando eu estou na janela, o único peso em mim recai sobre os olhos do meu vizinho — certamente mais fechados a cada trago. Ele não se preocupa em soprar a fumaça pela janela, em vez disso liberta os pulmões numa neblina que toma conta do conjugado. Meu vizinho deita e olha para o alto exatamente como os apaixonados procuram formas em nuvens que desmancham com o vento. Eu sigo viajando com ele.

Não gosto de maconha, acho que a erva fumada traz a concentração de fora para dentro, torna o centro do usuário maior que o resto das coisas e o pensamento vulnerável. Tampouco gosto do cheiro, enjoativo, por isso imagino uma atmosfera densa a do apartamento do meu vizinho, o que me faz lembrar um trecho do excelente “Cinema Orly” (1999), de Luís Capucho, escrito num talento que transcende a minha confusão de ideias. Ele diz:

“Quanto à onda que provoca o baseado, trata-se dessas experiências que se perdem no rol das coisas que são óbvias demais, simples demais, comuns demais e são inenarráveis exatamente como narrar o que sentiram Adão e Eva após comerem a maçã ou narrar uma galinha que atravessa a rua. O baseado ilumina minha imaginação. Toda imagem é surpreendente e se eu não morro de medo, fico inchado de prazer. Com o baseado percebo que mais imagino do que penso ou que o meu pensamento, o meu raciocínio, é iluminado por imagens o tempo todo. Se o meu cérebro funcionasse apenas sob o efeito de um baseado eu seria uma fogueira que arderia mais rapidamente. Não consigo entender como alguns amigos conseguem ser maconheiros. Na verdade, mesmo com aquele prazer de quando fumado, não gosto de maconha, não gosto de estar sensível, de estar percebendo. Prefiro a minha cabeça limpa, a minha cabeça sem me surpreender com o seu colorido. Também fico religioso quando fumo. Desvendo equações místicas. E sinto-me preso, como se eu tivesse uma alma realmente atada, impossibilitado de sua leveza por conta da imobilidade e peso do meu próprio corpo. E não gosto disso. Não gosto de pensar religiosamente, acho perda de tempo. Por isso fumo maconha já meio bêbado, quando o meu pensamento fica menos rígido e quebra-se com facilidade para não se prender a nenhuma ideia, nenhum pensamento mais longo ou inconsistente. Com a maconha os sentidos parecem mais longos, mais largos e o tempo mais intenso.”

Meu vizinho toda noite acende um cigarro delicadamente recheado de maconha. Eu, de um alto que não é tão alto assim, olho para ele preso em sua atmosfera densa, focado em seu próprio centro, sendo o protagonista involuntário do meu alcance. O travesseiro parece menos resistente ao peso da cabeça concentrada, livre de preocupações externas como a minha também parece estar quando eu recorro à janela. Nunca o escutei tossir, tampouco ligar música muito alta. Nossa relação, muda pela distância, desprovida de contato visual, não tem espaço para densidades maiores que a da maconha que ele tanto fuma. Um dia, porém, enquanto ele se divertia com a fumaça, me peguei pensando em como a triste trajetória da erva, no Brasil, entre plantio e pulmão, poderia ser transformada em um caminho mais eficiente em direção ao aval do Estado para uma liberdade tão banal. Banal como meu vizinho, no Catete, um rapaz que fuma às noites antes de dormir. Mas, estando na janela, não me aprofundei nos pensamentos tristes do Brasil, por que é da janela que eu viajo com o céu por vezes estrelado, com os prédios ou meu vizinho. Não posso ser denso na janela, não quero.

Ontem à noite, o rapaz sentou na cama de pernas cruzadas e pôs-se a despedaçar a maconha-concreto que desce os morros no Rio de Janeiro, seca em lajes – diz-se até que banhada em mijo. Levou o baseado à boca e fumou deitado. Eu fui viajando pela janela, concentrado em tudo que não sou eu, ao contrário de meu vizinho – sempre focado em seu centro. Fomos juntos nessa onda muito doida que é a dele, muito parecida com a minha, cujo combustível não é a maconha e nem poderia ser porque não me interessa entrar ainda mais dentro de mim; eu preciso sair, virar o avesso, viajar no outro, nele e em mais um monte de gente. A neblina no quarto, lá embaixo, ficava mais densa. Eu o observei até que meu estômago desse sinal de vida – coisa que certamente aconteceria com ele dali a algum tempo. Ao voltar à janela, depois de jantar, vi que o rapaz já estava dormindo, sua privacidade escancarada e o quarto completamente iluminado. Não sei se ele teve tempo de guardar a ponta do baseado. Meu vizinho, às noites, como eu, parece estar muito cansado. Para lidar com isso tudo, nós, eu e ele, seguimos viajando.

Direções

Dica número um dos guias de viagem, especialmente os que versam países do norte, é de que o viajante deve permitir perder-se pelas ruas das cidades, deixar se envolver pelos encantos de tudo que é novo e diferente, bonito. Mas, mesmo de férias, a preocupação com as direções – sempre elas, se faz presente a todo instante. Logo nas férias.

Eu estive recentemente em Praga, na República Checa, e uma das minhas boas impressões da capital se deu pela facilidade com a qual é possível se localizar nas ruas, tanto na cidade histórica quanto na Praga renovada, mais moderna. O meu cérebro matemático, tão burro, exige de mim um esforço monumental para interpretar as direções dos mapas em função dos pontos turísticos, restaurantes, do caminho de volta para a hospedagem. Em Praga, tendo o rio Elba como referência, meu cérebro ficou um pouco mais relaxado, frouxo, e eu pude me preocupar menos com os caminhos percorridos. Eu andava pelas ruas traçando as linhas retas criadas pela minha mente, sempre com as referências que funcionavam melhor para mim. Eu imaginava meus amigos talentosos com números, como o Daniel, tirando de letra os caminhos da cidade, já sacando de todos os desvios e atalhos. Eu, pouco habilidoso com as noções de espaço, em vez de virar na quinta ou na segunda rua – não sei, tornava tudo visual. Para retornar ao apartamento da Alena, onde me hospedei, eu atravessava a mais feia das pontes, certo de que ela me levaria à rua que escolhi ser a principal por nela estarem cravados os trilhos do tram (ou bonde, ou VLT). Depois disso, eu tinha que entrar à esquerda na esquina do sex shop “Erotic City”, enorme, e andar até a pichação “abortion sucks”, quando eu deveria virar à direita. Ali eu estaria “em casa”. Eu pensava que Daniel, por exemplo, chegaria muito mais rapidamente com apenas uma olhadela no Google Maps. Eu tinha a noção que percorria caminhos por demais geométricos, quadrados como os resquícios da arquitetura comunista, eram poucas linhas tortuosas, mais espertas.

Eu estou escrevendo isso porque estou meio cansado. Nós voltamos de férias e temos que retomar as direções, não as que tratam do plano espacial, mas sim as que conduzem a vida para o que ela é – ou para o que ela precisa ser. E me parece cada vez mais difícil mudá-las, transformá-las em outras direções. Às vezes eu gostaria de seguir por direções opostas às que eu estou acostumado a seguir. É muito difícil perdê-las, transformá-las. No trabalho, em casa, nas redes sociais, as direções precisam corresponder às expectativas de tanta coisa, de tanta gente. Não tem sido fácil para mim e acredito que também não esteja sendo fácil para você.

Eu queria escrever mais, mas não sei escrever o que eu sinto, só o que eu vejo. Então vou terminar:

Ontem eu parei para comprar goiabas. Elas não estavam nos meus planos, mas no caminho em direção ao Largo do Machado, um carrinho de madeira cheio delas me saltou os olhos. Amareladas ou mais verdinhas, molhadas, refletiam o sol quente de outono. A água que as hidratava espirrava de uma garrafa de dois litros de refrigerante com a tampa perfurada, um regador improvisado cuspindo no compasso do apertar das mãos do vendedor. Cinco por dez reais, informou o rapaz, um desses moleques de pouca idade, magro e sem camisa, o celular viscoso de suor preso à barra da cueca aparente – uma ressignificação de Calvin Klein com um bocado de valor. O umbigo vazava como se não comportasse o pouco recheio do corpo.

O vermelho das entranhas das goiabas-vitrine já havia me conquistado, nem pestanejei. Eu pedi auxílio para escolhê-las, comeria todas em dois dias, informei ao rapaz, dispensando as mais verdes. Ele, de prontidão, ostentando óculos de lente azul – desses modernos que refletem o que se vê -, catava as bichanas, as apertava com delicadeza, iam diretamente do carrinho para uma sacola de plástico translúcido, das que não têm alça e ficam dispostas em rolos para a pesagem de frutas e legumes nos supermercados. Me incomodou imaginar o caminho até em casa segurando uma sacola sem alças, punho cerrado para carregar minhas goiabas. Elas valeriam o sacrifício.

No tempo em que movimentei o braço para tirar a carteira do bolso traseiro da bermuda, o rapaz olhou para minha cara e disse: “Tá triste? Fica triste não, doutor, alegria é a melhor coisa que existe”. Eu não soube o que responder. Os óculos dele me refletiam, penso que triste. Primeiramente imaginei culpar minhas sobrancelhas, desenhadas em ligeira queda desde que nasci. Depois me entendi triste. Um ontem triste. Eu agradeci ao vendedor e rumei ao meu apartamento, certo para onde eu queria ir, mas sem direções. Punho cerrado para carregar minhas goiabas.

As roupas que usamos

“Era melhor quando a milícia tomava conta”, me disse agora uma pessoa com quem convivo praticamente desde quando nasci. Eu a adoro, e adoro ainda mais o tempo que passamos juntos, semanalmente, quando ela chega para cuidar das tarefas domésticas da minha casa. Sento no sofá enquanto ela passa as roupas que eu uso e conversamos sobre as coisas da vida. As roupas que eu uso.

Ela mora em um lugar carente até mesmo de asfalto, dominado pela violência encarnada em homens sem camisa, fuzis apontados para o alto, controle de entrada e saída, eles invadem seu quintal de supetão para filar o churrasco de fim de semana. Todo fim de semana tem churrasco regado a “cracudinha” de Antarctica. São cinco por R$ 10, ela me disse. “A milícia, ao contrário dos traficantes, não mexe com os moradores”. Não parece haver outra opção.

Hoje ela me contou um caso triste. Seu vizinho, um menino de 13 anos, usou a corda com a qual costumava brincar e se enforcou, quebrou o pescoço pendurado da laje. Era gay, “todo desmunhecado” segundo ela, mas um bom menino. Tinha até mesmo as unhas crescidas como deixam as artistas da TV. Ela me perguntou o que leva uma pessoa a se matar, respondi que deve ser a brutalidade do sofrimento, da agonia e da falta de amparo que impede enxergar luz no fim do túnel. Eu disse que ele deveria estar sofrendo muito.

O telefone dela tocou, segurou o aparelho entre o ouvido e o ombro, posição que me mata, e, passando as roupas que eu uso, danou-se a comentar com a irmã o suicídio do jovem. Ela dizia que não havia problema do menino ser gay, que achava ser menos pior do que quem rouba ou mata. Do outro lado da linha, a mulher fez o que entendi ser uma piada, as duas riram. Ao fim da ligação, ela me contou: “Minha irmã disse que ele foi sentar no colo errado… No colo da capiroto. Que coisa horrível!”.

Eu disse que não há problema em ser gay, e que, óbvio, muitas famílias não estão acostumadas com isso, mas que as pessoas nascem assim, exatamente como ela percebeu gostar de homens em algum momento da infância. Que ninguém pode mudar isso e que não é algo a ser mudado. As pessoas precisam entender. Ela concordou, disse que viu dois homens se beijando na Cinelândia e achou normal, que as crianças têm que ter boa educação para lidar com isso. Concordei dizendo que ninguém aprende a ser gay. “Não, Fred?”. Não. Ela falou que “na área dela” dizem que a Globo ensina, que é culpa da Globo. Mudamos de assunto. Voltamos a falar das “cracudinhas” que, no meu Carnaval, costumo pagar R$ 10 por três, vendidas justamente pelas famílias que vêm em bando com seus isopores lá da “área dela” (e dizem que brasileiro não gosta de trabalhar).

Nesta semana, um jovem de 13 anos pegou a corda com a qual costumava pular, passou pelo pescoço e se jogou de uma laje que eu imagino quente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Era gay, tinha unhas grandes como as das artistas da TV, traços femininos, possivelmente sofria bullying (algumas pessoas traduzem como “besteira”) e carregava o peso nas costas de temer ser um desgosto para uma família – imagino, não os conheço. Família essa que carece até mesmo de asfalto para se locomover. Quando chove é um problema. Família como a da minha amiga, que precisa fazer os filhos se alistarem no exército para “ter uma chance de sucesso”: “Eu não tenho como pagar uma faculdade, né, Fred”. Ela não vai votar em ninguém, disse que todos são corruptos. Ao fim das roupas passadas, as roupas que eu uso, ela me perguntou o que acontece com as pessoas que se matam, porque, segundo a irmã – leitora fiel da bíblia – não há salvação. Eu não soube responder, mas que uma coisa é certa: nós, os vivos, possivelmente não vamos para um bom lugar, com ou sem as roupas que usamos.

Aviso no elevador

Seu José Monteiro morreu na terça-feira. Nós compartilhávamos o mesmo andar no prédio, ele no 504, eu no 510. E apenas isso. Ele, já com limitações enormes de homem muito velho, equilibrava-se vagarosamente com o auxílio de duas bengalas; era dono de seu próprio tempo, escutava só o que a idade lhe permitia – quase nunca respondia meus cumprimentos. Nossa relação limitava-se à minha enorme paciência em esperá-lo alcançar o elevador para que pudesse entrar tranquilamente, sem a preocupação de segurar os dois apoios de madeira com apenas uma das mãos. Deus sabe, lá no topo do céu, quantas vezes eu pensei em desistir. Nunca o fiz.

Eu não saberia o nome do velho, José Monteiro, não fosse o aviso do velório preso à porta do elevador. Perguntei ao Isaías, o porteiro-chefe, cuja grafia correta também pode ser feita com z, se o anúncio tratava do velhinho do 504. No fundo, eu já sabia. Subi para meu apartamento pensando numa série de impossibilidades; que seu José Monteiro não terá chances de acompanhar o resultado das eleições em 2018 ou da Copa do Mundo. Tampouco verá os desdobramentos da intervenção do (P)MDB de Temer no (P)MDB fluminense de Pezão. Penso que de intervenção seu José já havia de estar cheio – o imagino ainda garoto, orelhas grudadas no rádio, ouvindo atentamente anúncios de intervenções ainda mais drásticas mundo afora, Brasil adentro. A morte interveio nesta terça-feira deixando seu José das duas uma: cheio de dúvidas ou coberto de infinitas certezas. Decerto, a mim, restaram as dúvidas.

Não sentirei saudades do velho Monteiro, mas acredito que ele permaneça nos sentimentos de alguns de seus familiares. Talvez ele ainda exista no olhar de um neto, numa boleira de porcelana pintada a mão ou numa cristaleira antiga, numa casa de veraneio no interior do estado. Pode ser que algum de seus netos nunca tenha tido a oportunidade de segurar a porta do elevador para o avô como eu tive, foram inúmeras vezes – a morte tende a ser ingrata. Ele, porém, pode nunca ter-se multiplicado em netos, filhos; os irmãos talvez o tivessem deixado sozinho, no Catete, como ele costumava estar, velho, devagar, com as limitações de homem fraco que eu temo um dia ter que enfrentar. Também temo ter que um dia sentir a dor profunda da morte, sensação que ainda, felizmente, eu desconheço. Não sei o que é enterrar, no sentido literal da palavra, um amor de perdição, alguém que eu amasse incondicionalmente. Um dia, e depois em outros, é provável que aconteça. Não quero. Imagino a tristeza de quem amava seu José Monteiro em um dia em que meu único desconforto havia sido, até ali, ter que descer para pegar o jornal.

Eu desci para pegar o jornal; sou o único do prédio que recebe diariamente o Estado de S. Paulo – Izaías, cuja grafia correta também pode ser feita com s, me contou. Neste breve espaço de tempo entre meu apartamento e a portaria – encurtado pelo fato de não ter que esperar seu José Monteiro – eu me vi obrigado a enfrentar meia dúzia de reflexões acerca da morte. Meu vizinho morreu, estava escrito na porta do elevador, e a minha vida seguiu no mais previsível dos cotidianos. Haveria como não ser estranho? Eu sempre digo e repito: é tudo muito doido.

O coração das velhas

As velhas se espremiam efervescentes por entre as gôndolas renovadas, carregavam cestas recheadas de produtos em promoção. A reinauguração de uma das principais farmácias no Catete, agora maior e mais moderna, repaginada, era o motivo de tanto alvoroço. Na porta, por onde cogitei sem sucesso não atravessar durante a grande semana de estreia, um sujeito com voz de cafajeste anunciava cosméticos e medicamentos mais baratos que o normal, ele usava o alto-falante para seduzir as velhas com preços cuidadosamente pronunciados número a número: “seis nove nove”; “cinco quatro oito”; “isso, minha senhora, eu falei Omeprazol a oito quatro nove”. A fila dos caixas não diminuiu durante aquela semana, enfileiravam-se todos os que buscavam preços mais em conta, curiosos, toda a gente do Catete, as velhas, eu.

Lá dentro, na farmácia lotada como bloco de carnaval, dava para sentir emanar das velhas de colo suado algo como um pouco de paixão, um pouco de tesão, um calor que alargava seus peitos, que as movia para lá e para cá, estavam incendiadas ali, naquele bordel de descontos e medicamentos, alcançavam o que podiam, conferiam a validade, peitos queimando como quando nós, os que ainda são ligeiramente jovens, saímos à noite sem saber se as possibilidades vão corresponder às expectativas. Algumas reclamavam da quantidade de gente, afinal, “esse povo não tem mesmo o que fazer numa hora dessas”. Circulando com cestinhas cheias, elas não mais precisavam registrar os produtos com uma atendente antes de seguir para o caixa – coisa que sempre me deixou irritado em algumas farmácias do Rio. O sistema da nova loja, renascida das cinzas de onde meu bar preferido, o Bar Getúlio, fechou as portas em 2010, estava mais simplificado: bastava escolher o produto da prateleira e ir direto para a fila. E a fila estava cheia delas, das velhas, chupando o que viam pela frente como abelhas fazem com o suco das flores. Eu que adoro as velhas, e sei que elas me adoram também, me enfiei no amontoado de gente apenas com a intenção de observar o formigueiro; comprei, porém, uns cinco ou seis sabonetes dos meus preferidos, os da marca Phebo que vêm em caixinhas cujos nomes são viajados e maravilhosos: “Figo da Turquia”, “Cedro do Marrocos”, “Alfazema Provençal”, “Tuberosa do Egito”, “Limão Siciliano”. Gosto de imaginar que as ervas e fragrâncias atravessam os oceanos para perfumar as barras que chegam até minha casa, imagino algo como eu imaginava as Companhias das Índias Orientais nas aulas de História, quando eu era ainda menos entendido das coisas.

No formigueiro de velhas apaixonadas, ouriçadas, enquanto a fila parecia não andar, dei por pensar no que mais teria o poder de deixar os peitos das velhas aquecidos, o coração mais acelerado, pulsante, com um amor disposto e quente, quase viscoso. Minhas considerações foram levando o pensamento cada vez mais longe, até chegar em algo que me desconcerta ainda mais a cabeça: a minha própria velhice. Às vezes eu me imagino velho, muito velho e limitado, empurrado numa cadeira de rodas num passeio pelo Aterro do Flamengo. A imagem de quem me empurra nunca é nítida, porém as minhas limitações de homem velho saltam o pensamento, passam pela garganta e espetam o coração. É muito desconfortável imaginar-se limitado, sem o peito atravessado de desejos, sem liberdade, sem poder correr o menor dos riscos. Na fila da farmácia, eterna e soberana, eu pensei como é bom encarar a possibilidade de certos perigos, e isso me levou a ouros dois pensamentos ainda mais detalhados.

Eu lembrei de como alguns riscos me fazem sentir desafiado, como por exemplo quando eu abro a porta principal do meu apartamento para levar o lixo à lixeira do corredor. Minha porta é dessas cuja maçaneta não gira por fora, ou seja, mesmo destrancada, se ela bater e eu estiver do lado de fora sem chaves, fico sem conseguir entrar em casa. Sempre quando vou à lixeira, com o saco plástico em mãos, escancaro a porta, deixo as chaves onde estão e saio acelerado para levar o lixo até a lixeira, na pressa para que a corrente de vento não bata a porta e não me deixe de short, descalço e sem camisa, trancado para o lado de fora. Eu sempre encaro o chaveiro, uma lembrança de uma amiga que visitou a Disney, confortavelmente encaixado do lado de dentro na fechadura, antes de decidir não arrancá-lo do lado de dentro do apartamento. Certa vez, a porta quase bateu. Riscos, riscos!

O segundo pensamento que veio à cabeça enquanto as velhas-formigas dilatavam varizes na festa da farmácia, foi a lembrança de que a consideração sobre possíveis riscos me levou a entender um pouco melhor o feminismo, há alguns anos. Eu nunca li nenhum livro ou autora renomada sobre o feminismo, déficit meu, o que sei sobre o tema encontrei nas redes sociais ou li artigos de mulheres que são intermediárias do feminismo, como colunistas e influenciadoras. Nunca, ou ainda nunca, fui em fontes mais concretas de especialistas. Na verdade, seria toda e qualquer mulher uma legítima especialista em feminismo? Por um lado, acredito que sim. Mas, certa vez, ao pensar sobre os riscos que corro, entendi concretamente algumas limitações das mulheres. Eu estava conversando com uma amiga sobre as coisas que sentimos, coisas cotidianas, e eu queria que ela entendesse como, para mim, é importante voltar tranquilamente da Lapa, a pé, nas altas horas, quando a cor do céu permite enegrecer o coração nos impulsos, em pensamentos ébrios, toscos, ridículos. Ela, por considerações de segurança muito mais graves que as minhas, não se sentiria confortável nem de pensar em voltar sozinha, a pé, da Lapa. Tampouco conseguiria entender o que é sentar no gramado do Aterro, à noite, mesmo quando os guardas ainda se fazem presentes, e olhar para Niterói no horizonte com tranquilidade. Eu queria falar sobre essas coisas com uma amiga, ela é uma das que gostam de falar sobre as sensações, mas não entenderia porque os riscos, para ela, ultrapassam todos os limites do aceitável apenas por ela ser mulher. Tudo muito difícil. Foi aí que essa dificuldade em conseguir comunicar sensações me despertou para a questão feminina e para um aprendizado que deve ser cotidiano.

Eu, na farmácia, com o pensamento longe, voltei a atenção às minhas velhas. Já estava no caixa pagando pelos meus sabonetes. Sei que não me sentiria limpo como sinto quando compro os sabonetes antibacterianos, que parecem eliminar toda e qualquer impureza do corpo, mas me sentiria mais perfumado e viajado, mesmo que no plano das ideias. Minhas velhas do Catete estavam em polvorosa, os corações seguiam em chamas. O meu também estava aceso, em sintonia com todas elas. Angústia apenas na incerteza da velhice, do que vai ser capaz de incendiar minha mente e coração quando eu estiver velho e limitado. Não sei se os jovens vão me adorar, tampouco sei se eu vou adorar os jovens como as velhas do Catete me adoram. Em casa, depois da academia, tomei banho pensando se as coisas que ouriçam as velhas do Catete são as mesmas que efervescem as que eu imagino colher figos na Turquia ou Alfazema em campos franceses. Não sei, não entendo muito bem a velhice e acredito que vá demorar mais um bocado para eu entendê-la. Talvez eu, vai saber, eu nunca chegue a entender. São os riscos!

Divina ignorância

Dois homens sentados à mesa ao lado bebiam saideiras estendidas por mais de hora desde que o jogo havia acabado. Fluminense perdeu para o Grêmio, gostei do resultado, sou gremista quando não torço para o Flamengo por conveniência. As cores do tricolor gaúcho me chamam a atenção desde pequeno. Os dois homens torciam para o Flamengo, certamente por uma paixão da qual não compartilho, e não se afetaram pelo resultado da partida. Pouco prestaram atenção, na realidade. Um deles, o mais velho e experiente, investido de muita autoridade, cismava em analisar as atitudes de um terceiro, ausente, que ali não tinha chances de se defender. Pigarreando cigarro, ele enumerava detalhes da postura de quem chamava de “moleque” que não condiziam com comportamento de “sujeito homem”. Eu, antenado, de ouvidos em pé, sentia-me cada vez mais homem-predicado, homem-aposto, ou o contrário, qualquer tipo de homem que não o “sujeito”. Eu não me encaixava no perfil traçado pelo homem bêbado da mesa ao lado. Eu-moleque, felizmente. Seu acompanhante, um rapaz jovem e bonito, pouco falava. Concordava, porém, com tudo que saía da boca do homem falastrão, sábio, cheio de conhecimento. O jovem, pouco expressivo, ostentava preso ao pulso direito um relógio imenso, branco e dourado, tão grande, um vira-tempo, artefato de quem é Senhor do Tempo. Meus pulsos vazios me fragilizavam perto do rapaz, ele sentava muito confortável na cadeira do bar, a mochila no colo não o incomodava. Comparado ao mais velho, no entanto, eu me sentia engrandecido a cada afirmação assombrosa. Ele externava uma visão estreita do mundo, pouco reflexiva, permeada por clichês arraigados em preconceito e pouco conhecimento. No fim das contas, o homem não sabia de nada, de coisa alguma.

Naquele bar, entreouvido por aí, eu me sentia muito grande e inteligente, cada vez mais inteligente, superinteligente, até que minha inteligência, tão grande, tão enorme, começou a transbordar do cérebro numa desinteligência tamanha, arrogante e fechada dentro de si. Fui ficando inteligente sujeito homem. Precisei tomar mais um ou dois chopes para acalmar o pensamento quase bélico, enfurecido, burro. O homem seguia com o discurso de sujeito homem, terrível, eu cada vez mais inteligente à medida que minha inteligência acalmava, voltava ao normal, pouca inteligência. Estava ficando bêbado, minha atenção presa à mesa ao lado.

Mais metade de hora havia passado, o homem mais velho seguia analisando as coisas do mundo, deixou em paz o nome do moleque que como eu não era sujeito homem. Desembestou a falar sobre política, sociedade, exposições de arte, atores globais. Eu me distraí por algum momento quando o garçom avisou que a cozinha do boteco estava prestes a fechar, perguntou se eu gostaria de comer alguma coisa, última oportunidade. Respondi que não, pedi um energético, precisava de mais combustível para os ouvidos. Retomei o fio da meada quando ouvi o homem dizer que “gente feia adora ficar pelado”, assim, “pelado”, sem combinar o gênero do sujeito com o rabo do predicado. Ele criticava exposições de arte com a minuciosa inteligência de sujeito homem, associava nudez à falta de virtudes, o rapaz ao lado concordando com a cabeça. Pensei em pedir seu relógio emprestado, o de poder vira-tempo, para levá-los ao século 17 e lá deixá-los – enterrá-los. Deixei, porém, a viagem ao tempo de lado para me concentrar na afirmação do homem sábio, inteligente, ao dizer que gente feia adora ficar “pelado”. Lembrei de um amigo, muito bonito, que teria se divertido com esta afirmação. Eu estava intrigado. Será que o homem, muito feio, tremendamente feio – ao contrário do jovem Senhor do Tempo -, fazia parte do grupo de pessoas que adoram ficar peladas? Teria ele consciência de sua própria feiura? Ele, cheio de inteligência, criticava duramente a nudez alheia, traçava um panorama do que dizia ser “arte moderna” – uma queda livre engatilhada pela armadilha da palavra “moderna”. Um bocado ignorante, o homem. Um homem moderno.

Eu resolvi levantar para ir ao banheiro, minha bexiga e cabeça já estavam cheias. Sem pensar, pedi para que o sujeito homem olhasse por um instante meu copo de chope e lata de energético enquanto durasse o tempo na fila do banheiro. Coisa rápida. Ele foi educado, disse que eu ficasse tranquilo, “Fica à vontade, parceiro, vai lá”. Na volta, me convidou para sentar à mesa deles naquela longa saideira. Eu, que sozinho dou-me por sociável, trouxe meu chope e meu energético para a perto e, com a cabeça cheia de tanta burrice, soltei um último suspiro de inteligência: “Não entendo nada de arte moderna. Muito menos de gente feia e pelada, mas vocês viram que jogo fraco o do Grêmio?”. Divina ignorância! Troquei o chope por um terço de garrafa e voltei para casa com a cabeça vazia de política ou arte, mas com meia dúzia de pessoas peladas na imaginação.

Rapidinha 3

Malha (treina) na minha academia um rapaz magro de dar dó. Vejam bem, eu não tenho nenhum tipo de preconceito contra magros, longe disso, considero magros, magros, e somente magros, estão me entendendo? O rapaz magro, no entanto, me chama a atenção sempre que nos esbarramos na academia. Ele malha, malha, malha (treina, treina, treina) – o acompanho há um par de anos -, e pouco se desenvolve, continua muito magro. A postura mudou, a magreza permanece. O que mais me intriga, porém, é o quão intendido de futebol ele é. Eu o encaro, tão magro, e me pergunto como tanta informaçãofutebolística se coloca de forma tão eloquente e firme naquele corpo miúdo, enfraquecido. Quando chega na academia, é um cara descolado e popular, desata a comentar tudo que envolve bola no pé. Ele conhece os técnicos dos principais times dos países para os quais a gente aponta o dedo no mapa na hora de sonhar viagem de férias. Croácia, Dinamarca, Romênia. Tem futebol na Albânia? O menino explica a trajetória do jovem jogador russo que fraturou a perna pouco depois de ser contratado por um time brasileiro, prevê futuro incerto de algum time em algum campeonato europeu; tem na ponta da língua a tabela do brasileirão, ele provavelmente já conhece o resultado. Só ele. Quando o assunto é Flamengo, é um Deus nos acuda: ele profetiza as partidas melhor do que o Zico ou que a Globo. Diz que a Globo é flamenguista, acho graça, imagino ele no Twitter. Eu vou até o bebedouro, troco de aparelho, e o menino está lá, falante, gastando toda a energia do corpo magro com futebol. Quanto aos pesos, leves, marcam no braço o esforço de carcaça de inseto. Quando fala de futebol, porém, vira leão, forte, entendedor, me intimida.

Eu tento me concentrar na música que ouço; os comentários do menino como percalços na minha rotina, futebol, não entendo muito bem o que ele diz, de longe vou ficando fraco. Ele analisa o estilo dos técnicos alemães, traça um panorama do pós-guerra ao 7×1. Eu fico impressionado com tanto conhecimento, tanta noção de tanta coisa, um corpo miúdo, maior que todos, eu nunca soube tanto de coisa assim. Ele fala até dos times asiáticos, dos quais não tenho menor paciência de ouvir, aumento o volume da música. Lamento que o horário em que ele e eu malhamos – treinamos – não coincide com o horário da moça que malha – treina – fazendo “lives” no Facebook. Só ela consegue me dominar por completo, ter toda minha atenção. Ela coloca o smartphone para o alto e pronto: está ao vivo para todo mundo que quiser ver. Não aguento, derreto por completo, vou-me embora, sinto-me mais forte do que quando entrei na academia – embora barrigudo -, mas mais cabisbaixo, futebolístico, ao vivo. Sinto mais “live” e pouco alive. Penso que deve ser mesmo essa a “age of gold, yes the age of old, the age of gold”. Aumento o volume, cara. Preciso aumentar o volume. Vocês se ligaram? Desculpem a repetição, a besteira. Que loucura.

Cachorro-quente

Deslizaram as palmas da mão uma contra a outra; ao fim, um toquinho de punhos cerrados. Os dois se encontraram por acaso, acredito, e juntos seguiram em direção ao Largo do Machado. Um deles disse que o pai estava em casa preparando cachorro-quente, estendeu ao outro um convite para o lanche. “Bora!”; não deveriam ter mais de 19 anos. Eu estava logo atrás, seguindo na mesma direção, de orelhas e olhos em pé na conversa alheia. Ambos tinham os calcanhares ressecados típicos dos rapazes cariocas – sempre em contato com o chão quando as havaianas escapam dos dedos -, consenso entre os playboys esbeltos da Gávea, os suburbanos perfumados do Catete, Parada de Lucas ou Todos os Santos. Uma desidratação universal característica da tal democracia da praia, sistema político do qual o povo da Guanabara tanto se orgulha. Aqui estão todos juntos, algo assim; não há hidratante ou podólogo que resolva – não há nada a ser resolvido.

Eu seguia logo atrás, o encontro entre amigos me fazia pensar quando foi a última vez que um esbarrão espontâneo daqueles havia me acontecido, despretensioso como aquele parecia ser, simples mas poderoso, que me fizesse alterar a rota a ponto de aceitar de supetão um convite presencial para jantar ou lanchar na casa de um amigo. Não costumo desviar assim da minha rotina, hoje em dia é tudo tão combinado. Os meninos amigos andavam devagar, pareciam animados para comer o cachorro-quente preparado pelo pai de um deles. Diminuí o passo para acompanhar o raciocínio dos falantes sem grandes interferências. Ouvi que achavam estranho não haver Smart Fit no Catete, que ali as academias de bairro sobreviviam incólumes ao apetite voraz do capital. “O Catete resiste!”, disse o mais baixo, achei graça. Eles conversavam sobre trivialidades e percepções variadas, e eu os acompanhava involuntariamente pelo mesmo caminho.

O que andava à direita, mais alto, cujo pai em casa fervia salsichas, sacou do bolso o celular e começou a mostrar fotos de quem depois entendi ser Mariana, uma jovem pela qual o menino estava muito interessado. Ele comemorou com um sorriso no rosto: fazia exatos dois anos desde que Mariana o adicionou no Facebook – on this day. Pouco se falaram desde então, porém, ela tinha namorado. O menino contava angustiado ao amigo como Mariana não saía de sua cabeça, ele não sabia mais o que fazer. Eu não consegui descobrir como ele e a jovem haviam se conhecido, tampouco vi a foto de Mariana, mas entendi que a menina posava na Praia Azeda, em Búzios, e era muito bonita. Mais bonita que a própria praia “que é lindona”, disse ele. O apaixonado ouvia do amigo que esquecesse a “mina”; ele concordava diante do fisgar da impossibilidade. Eu, ali atrás, torcia para o casal improvável, mas o menino não tinha coragem sequer de puxar assunto com Mariana nas redes sociais – um millennial exemplar, a falta de iniciativa nada tinha a ver com respeito pelo namoro alheio.

O amigo e eu ouvíamos as lamentações do menino, eu mais condescendente me identificava com as insatisfações. São muito difíceis essas fantasias com as quais a gente não aprende a lidar, elas brotam de um lugar onde só se descansa diante do entendimento de que a vida é traiçoeira e não dá trégua, e que às vezes a complacência é o melhor caminho para buscar um pouco de paz, mesmo que um punhado escasso. A essência do sonho é ser sonho, não é mesmo? A melancolia só sossega com a aceitação, eu queria ter dito a ele. Mariana estava distante e assim estaria, ponto final, não há consulta ao horóscopo que pudesse trazer sossego. O menino lamentou que Mariana não estivesse inscrita no app Sarahah, assim poderia desaguar um pouco de suas inquietudes, mesmo que acovardado. O ouvinte, com o tom de voz mais elevado, lembrou que o caso do amigo parecia “o do Gabriel”: “Lembra, eu fiquei naquela ‘nóia por ele, sem ele saber, e nunca iria rolar nada, sem chances”. Entendi que um deles era gay e já havia estado, como todo mundo, plantado em terra morta, seco, sem que nada brotasse; talvez Gabriel fosse heterossexual, um amigão, brother, parça.

A esta altura, nós três já estávamos na boca da rua da Laranjeiras, ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Glória; o cachorro-quente já quase pronto, pensei, pai esperando filho para comer sem saber que o lanche teria companhia naquele início de noite. Dois meninos, Mariana, eu-ouvinte, Gabriel, tudo tão banal. O Catete estava acabando, e o avançar de Laranjeiras começava a limitar meu interesse à medida que eu distanciava do meu percurso original. Escolhi abandoná-los sem despedida. Meia-volta em direção à Praia do Flamengo, meu destino real, onde pretendia tomar um ou dois chopes desacompanhado. A uma quadra do bar, já na Praia, esbarrei em um conhecido, desses que a gente gosta sem motivo aparente ou concreto. Ele saía da academia, uma das duas Smart Fits do Flamengo – percebem o abismo de poucos metros entre o Flamengo e o Catete? -, e me perguntou se eu gostaria de tomar um cerveja, em qualquer boteco por alí. Neguei instantaneamente, disse que tinha um compromisso, minha boca respondendo no automático. Meu cérebro não teve tempo de pensar, escolheu mexer os lábios. Um encontro assim, de supetão? Segui para casa, de volta para o meu Catete, a cabeça embaralhada de ideias. Comprei um latão e um cachorro-quente na esquina da Corrêa Dutra.

Sinais

Sempre quando ouço alguém falar do “Norte”, assim, na trivialidade do comércio carioca, desconfio de que a referida região seja, na realidade, o Nordeste. Minha avó, nascida em Pernambuco, comete o mesmo erro geográfico – ou tem o mesmo costume nordestino (seria nortista?). Acho curioso.

Enquanto registrava meus pacotes de cotonetes, a atendente do caixa da farmácia reclamava irritada da operadora de celular, dizia que o bônus concedido mensalmente, do qual ela desconfiava não ser realmente gratuito, de nada lhe adiantava já que não permitia ligações para o Norte. Eu estava em silêncio, meus pensamentos completamente de acordo com as reclamações da moça; ela muito pertinente, resmungava à colega no compasso de bip-bips do leitor de código de barras. Não era daquelas farmácias que o cliente precisa registrar os produtos numa cesta numerada antes de seguir para o caixa, tampouco solicitar a atendente para pegar na vitrine trancada os produtos mais caros, como cosméticos, cremes para espinha, lubrificantes, protetor solar. Não gosto desse formato de loja.

Eu não usava cotonetes há um dia, algo impensável para mim. Me parece que o uso diário não é hábito saudável, mas não me importo. Só deixo de usá-los diariamente quando tiver esfregada na minha cara a fatalidade comprovada das tais hastes flexíveis. Talvez nem assim. Caso o pior aconteça, aos amigos mais próximos, peço que registrem na minha lápide: “morreu de cotonetes, faria tudo outra vez”. Agora que não fumo mais, que caminho a passos mais lentos para o fim da coisa toda, sinto-me mais aliviado em cravar as pontas de algodão no ouvido. O que seria do ser humano sem vícios, sem hábito destrutivo? Tão nojento é quando alguém senta próximo a mim, de perfil, e uma nesga de cera fica visível a olho nu, emergindo do buraco negro por onde passa o som. Imagino a namorada dando um beijo no pescoço, um cheiro, subindo carinhosa até o ouvido e… ingrata surpresa. Me embrulha o estômago.

A atendente seguia reclamando da operadora de celular nestes segundos que o texto alonga demais. Eu, mais ansioso para limpar os ouvidos que para acender um cigarro – hábito do qual já estou livre há quase dois meses -, perdido no Norte e na possibilidade de Nordeste, saí da farmácia muito concentrado nos meus pensamentos e lembranças, quando de repente ouvi alguém gritar “e aí, Fredão!”. Eu levantei a cabeça buscando meu interlocutor, olhei para um lado, para o outro, até avistar um conhecido, já lá na frente, seguindo caminho e acenando rapidamente para mim. Retribuí. Fredão. É engraçado porque, algumas pessoas, poucas delas, me chamam de Fredão sem me conhecer. É como tomar uma liberdade que não as dei, mas que gosto muito que roubem de mim. A primeira pessoa que me chamou de Fredão foi minha avó – e assim o faz até hoje – a mesma que das raízes do Nordeste evoca o Norte. Depois dela minha mãe, às vezes, quando não me chama de filho ou filhão – ou Fred, quando é para falar algo da esteira das obrigações. Ninguém mais do meu convívio cotidiano. Assim, Fredão ficou restrito a um círculo íntimo, minha avó e mãe, e ao mesmo tempo a poucos que pouco me conhecem mas já me engrandecem com um “ão”. Quando alguém me chama de Fredão, nos encontros e esbarrões, eu acho carinhoso – mesmo que não o seja. E essa história toda começou com minha avó. Foi aí, nestes segundos das coisas, já atravessando a rua, que eu tive certeza, pelo menos pra mim, que a atendente do caixa da farmácia se referia ao Norte, só que ao Norte da minha avó. Sinais. Vida que segue.