Rapidinha 2

Faça chuva ou faça sol, a moça baixinha que malha no mesmo horário que eu não falta dia sequer. Pega pesado. Ela é muito querida na academia, acho graça. Eu, que só abro a boca para cumprimentar os funcionários e o rapaz que nunca tirou o boné – entrou magrinho e hoje está um touro -, passo os intervalos entre as séries acompanhando com os olhos a fauna da academia. É tudo muito doido. Dia desses foi aniversário da baixinha, ela levou uma caixa com pedaços de bolo já fatiados e embalados em papel alumínio para que “o pessoal” pudesse comer depois. Tudo com muito cuidado, estão ligados? Imagino ela confeitando o bolo na noite anterior, beliscando sem culpa um pouquinho da cobertura – afinal, é aniversário dela. Saiu distribuindo por entre a floresta de aparelhos até o bolo acabar. Todo mundo cantou parabéns e ela sorria-serelepe. Eu, de longe, fiquei sem bolo e me contive em olhar para a muvuca esboçando sorriso de quem é solidário à festa. Eu estava ouvindo música e pensando como é estranho alguém “ser querido” na academia, um lugar feito pra estar, tão difícil de “ser”. Sinto-me nada na academia. Sinto-me estando. A moça foi tirando fotos, agradecendo as felicitações, corou com o parabéns, abraçou os instrutores. Ela é tão querida. Que loucura. Me imagino levando um bolo para a academia, as pessoas que eu não conheço cantando parabéns. É como algo de outro mundo, um mundo completamente diferente do meu, ali ao lado, no supino, na fila do bebedouro, todos os dias. Fico pensando porque o rapaz nunca tirou o boné. Tudo muito doido.

Rapidinha 1

A saudade escapa pelo basculante do 503 e percorre todo o corredor até invadir o meu apartamento, entra sem bater. O cheiro do refogado é a casa da infância de todo mundo – alguém há de negar? O perfume da comida da vizinha me deixa com saudades de muitas coisas. Dia desses eu pensei em elogiar o cheiro que sai do apartamento dela, tudo parece ser preparado com muito cuidado. Eu ouço o barulho de colher que vai da panela diretamente para a beirada da pia para que a parte suja de comida não entre em contato com nada – certamente ela vai usar mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez eu sinto saudades. Sempre aos sábados, quando eu costumo estar disponível para todos os cheiros e sons ao redor. Ela acabou de passar por mim no corredor, mas eu não disse nada. Talvez no próximo sábado. Uma coisa é certa: o cheiro do refogado é a casa de todo mundo.

Lúcio, morto (Pt. 1)

Quando Lúcio tombou morto na nossa frente, perplexos, levamos tempo para entender a imprevisibilidade da morte. Lúcio caiu como uma árvore serrada na base, sequer dobrou os joelhos. Valia tão pouco, diferentemente da madeira reencarnada em armários e mesas e cadeiras que ele nunca teve, que talvez por isso nenhum de nós tenha tocado-lhe o corpo num primeiro instante. Estávamos bêbados sentados no gramado da praça como fazem os adolescentes nas praças. Lúcio estava bêbado como escapam alguns de uma vida que insiste em ser muito difícil, guardava carros no Centro da cidade. Vestindo apenas bermuda e chinelo, magro e sujo no auge de seus 20 anos de idade, intrometeu-se na nossa roda de amigos e perguntou se algum de nós ousava duvidar de sua aptidão para beber. Tinha malemolência na voz, falava sorrindo, sorriso torto, muita simpatia. Disse que tomaria a metade restante da nossa garrafa de vodca de uma só vez, como num gole rápido. Já estava visivelmente bêbado. Trêbado. Alguns duvidaram, não era possível. Outros se negaram a dividir a bebida com ele. Entre nós, sentados, ouvi sussurros de quem se incomodava com a presença de Lúcio, parado ali, em pé, sem nada a oferecer. Outros, com os quais eu mais me identificava, o encorajaram a cumprir a promessa. Vira! Vira! Vira! Com o consentimento de alguns amigos, meus cúmplices, entreguei-lhe a garrafa numa sentença de morte, e ele não hesitou em entorná-la garganta a dentro. O líquido relutou em aceitar o destino de algoz tentando escapar desesperado pelos cantos dos lábios em direção à pouca barba de Lúcio. Como rios que abrem caminhos, parte do líquido escorria brilhante pelo seu pescoço, corria rápido para o peito e parava. Todo resto foi direto para o estômago do flanelinha. Dito e feito. Sem cara feia, ao contrário de nós, Lúcio enxugou a boca com o antebraço tatuado: Maria, estava escrito. Ele chacoalhou a cabeça e sorriu. Gosto de pensar que sorriu para mim. Tinha um sorriso bonito apesar de faltar-lhe um dente ao fundo da boca. Eu não tive tempo de retribuir. Deixando a garrafa vazia escapar de sua mão, deu um passo para trás e caiu de costas no gramado com a expressão serena de quem nunca teve a chance de experimentar o pavor das reflexões mais profundas sobre a morte.

Naquela madrugada, há mais de dez anos, meus amigos e eu levantamos assustados e ligamos para a emergência. Na praça, ninguém além de nós. Já passava das duas da manhã. Fui o primeiro a tentar acordá-lo, não lembro de medir sua pulsação ou verificar se ainda estava respirando. Bati repetidamente no rosto pálido, massageei o peito e cheguei a levantar suas pernas na esperança de que um fluxo mágico de sangue pudesse corar Lúcio, dando-lhe uma segunda chance. Pensei em enfiar algo salgado entre seus lábios para fazer levantar a pressão que deveria estar igualmente derrubada. Ninguém tinha nada para comer. Eu já havia desmaiado por causa de alguns excessos, mas sentia que aquela situação estava além do que nós, adolescentes bêbados de praça, havíamos vivenciado antes. Dois dos meus amigos foram embora apressados. Não deveríamos estar largados ao deserto de uma madrugada fria. Que encrenca. Lúcio também estava frio. Voltei ao chão e levei sua cabeça ao meu colo numa espera eterna pela ambulância. Tinha os cabelos negros cacheados e maltratados. As lembranças da delegacia, da minha mãe acordada chorando, gritando comigo, dos meses subsequentes em que a morte de Lúcio assombrou a mim e meus amigos não são muito claras na minha cabeça. Não sei ao certo até que ponto toda a narrativa dos dias seguintes àquele momento foram alteradas pelas emoções confusas de um passado que sempre retornou angustiado.

Meu primeiro encontro com a morte aconteceu pouco mais de dois anos antes de Lúcio morrer, quando minha avó escorregou no banheiro e bateu a cabeça na bancada da pia. Ela tinha 80 anos e morava com meus tios em um apartamento amplo, perto da praça onde matei Lúcio. Desde que o diabetes começou a ceifá-la lentamente, minha avó era cuidada por uma senhora apenas uns cinco anos mais jovem, o que sempre me incomodou. Como uma velha poderia cuidar de outra velha? Eu comentava com minha mãe que Vera não daria conta de fazer companhia e dar os remédios a outra velha, ainda mais velha que ela, mas minha mãe sempre dizia que eu não deveria me meter na vida dos meus tios. Eram eles que pagavam o salário de Vera, e, na cabeça de minha mãe, se era assim é porque Vera havia de ser uma boa cuidadora. Além disso, minha mãe tinha pouca afeição pela minha avó, mãe do meu pai. Enquanto foram casados, a velha vivia a resmungar pelos cantos dizendo que minha mãe afastava os netos da família. Nunca procurei entender isso.

Numa noite qualquer, Vera foi vencida por um sono pesado e minha avó, cheia de limitações de velha, levantou-se da cama alta em direção ao banheiro. Foi Vera que, no dia seguinte, fez questão de limpar o sangue no piso. Eu lembro de ter ido à casa dos meus tios e encontrá-la desesperada, mais velha do que o normal, chorando e passando pano no chão. Meus tios tentavam em vão levantá-la, que só esfregava e chorava e esfregava e chorava. Meu pai não estava presente. Ninguém o via há uns cinco ou seis anos. No velório, minha avó estava inchada, coberta de flores brancas e amarelas. Além da falta de vida, um véu fino a separava de nós. Eu não lembro da expressão da minha avó, morta, como lembro da de Lúcio, sereno, tranquilo. Na semana seguinte, meus tios me deram um pingente de santa Rita de Cássia que minha avó guardava na gaveta do criado mudo. Não tinha herança a ser distribuída entre a família, ganhava uma pensão medíocre deixado pelo meu avô, sujeito que nem cheguei a conhecer. Ela vivia às custas dos meus tios. Eu não esperava nada, não queria nada. Apenas guardei o pingente no fundo da minha gaveta, desta vez do meu criado mudo, como um respeito pela religiosidade de minha avó.

Continua…

Stalker, assim, do dia a dia

As pessoas seguiam concentradas em seus próprios ritos de normalidade. O homem com microfone na porta da loja de utilidades anunciava bolsas da moda para “conservar sua marmita com elegância”. Ele repetia: “para conservar sua marmita com elegância”. Ele repetia. Custavam 12 reais. O menino da banca de jornais sorria seu sorriso generoso e a moça entregava panfletos de comprador de ouro, as unhas imensas e coloridas, desenhadas com muito esmero. A nova filial das Casas Pedro era sucesso; a Rua do Catete estreitava-se em camelôs, coisas vagabundas inutilizavam as calçadas dando cor e movimento ao chão. Na porta da loja de doces, um menino pedia para que lhe comprassem uma caixa de paçocas. Maio estava acabando em seu devido tempo e tudo estava posto em seu devido lugar. Quase tudo.

Faz dois anos, Rafaela.
ou Larissa,
Júlia
ou Marquinho ou Thiago,
Luisa, Renata, Marcelo, Gustavo, Guilherme, Mariana ou Gabriela,
Luiz Felipe,

Escrevo sobre aquele dia do qual você provavelmente nunca vai lembrar. Eu me lembro muito bem. As pessoas seguiam concentradas em seus próprios ritos de normalidade. Menos eu. Tocava “Nine out of ten”, do Caetano, na banca de jornais. O menino sorria generoso enquanto lhe dava o troco das revistas que você havia escolhido. Você ainda compra revistas? Dois anos são suficientes para estremecer qualquer mercado editorial. Eu estava logo atrás de você, sorte a minha ter decidido comprar cigarros naquele exato momento – te descobrir me fez sentir alive, vivo, vivo, muito vivo. Você saiu da banca sem me perceber e eu já pensava em nós dividindo o sofá para discutir os assuntos das revistas; falaríamos sobre política, debateríamos a Veja ou a Piauí ou a Ana Maria, cruzaríamos as palavras com caneta Bic – ou lápis, caso você preferisse. Eu te segui até você entrar nas Casas Pedro. Vi que você esbarrou na moça que entregava panfletos de comprador de ouro e se desculpou muito gentil, sorriso não tão sincero quanto o do menino da banca, mas um sorriso só seu. Comprou temperos a granel, creme de leite fresco, uma caixa de suco de uva e pão sírio. Foi para casa, eu te segui até o seu portão.

Eu quis tanto conversar com você, Rafaela.
Ou Gaia,
Alice ou Bernardo ou Joaquim,
Flávia, Bárbara, Bruno Rodrigo, Eduardo, Carolina ou Viviane,
Henrique,

Lembrei também daquilo tudo que nunca aconteceu depois daquele dia que só eu lembro. Daquela vez que estávamos brigados e você não me avisou que eu estava com uma meleca presa no bigode na festa da Mayra. Lembrei também de você dizendo que pasta de dente tem que ser branca, senão não limpa direito. Quando você me traiu no Vietnã e eu te trai em Macaé, e quando nós dois nos perdoamos. Quando você me abraçou no dia em que meu cachorro morreu e quando nós ficamos perdidos em Luxemburgo. Lembrei que eu comprava seu chocolate preferido e que você me deu um pote mofado de whey protein que comprou na OLX. A gente riu tanto nesse dia. Tudo veio assim, de repente, na minha cabeça. Como quando a gente perdeu a aposta para o Luciano e a Maísa e tivemos que entrar no clube Bogari. Você não se lembra, mas eu já sinto saudades.

Beiras (Pt. 1)

Evandro desceu a escada estreita de um desses motéis de beira de rua onde provavelmente nunca se fez amor. Na placa de entrada, acima de um portal recém-pintado de branco, lia-se ‘quartos para cavalheiros’ em delicadas letras finas e verdes, uma tradução generosa para o que se enconde nas entranhas desses sobrados antigos onde aliviam-se os brutos, os escamosos, os frágeis, os necessitados e os viciados. Mais honesto fosse, talvez, se os quartos estivessem à disposição de cavaleiros vindos de longas distâncias, errantes e pobres, viajantes cansados montados em cavalos magros, exauridos, mas cheios de esperança. Nunca cavalheiros. Evandro, sem camisa, acendeu um cigarro e sentou-se no último degrau que dava para a calçada onde, tarde da noite, somente um velho com a barriga inchada deitava concentrado em sua convalescença de perna com pouca circulação. A lua estava linda. Evandro contemplava o céu com o olhar perdido na finitude do alcance de sua visão, o calor pressionava o peito por onde a fumaça expandia-se e escapava pela boca, os poros brotavam suor de fevereiro, quarta-feira de cinzas. Deserta, a rua Petrônio Alencar ressoava o latido de um cachorro invisível, cujo som era interrompido pela tosse do mendigo ao lado. A lua, cheia e soberana, pendurada no topo do céu, brilhava intensa e gentil, o brilho era tão forte que o homem chegou a pensar no sol escondido logo atrás da lua, colado, motivo de tanto calor. Pensou na morte trágica de São Jorge, assando preso dentro de uma armadura de metal pesado; o dragão feliz por ser noite de caça, não de caçador. Para Evandro, um homem sentado no degrau de um motel barato, todo dia é dia de caça, mesmo uma quarta-feira de cinzas.

As noites na rua Petrônio Alencar eram sempre silenciosas e mal iluminadas, exceto quando alguma confusão entre michês, putas ou travestis e seus clientes irrompia nos becos escuros. Vez em quando também havia batidas policiais num bordel na esquina com a Rua do Trindade, nada que Túlio Prata, sargento aposentado da PM, homem respeitado por gente de dentro e de fora da lei, não resolvesse de mãos molhadas. Fora isso, nada atrapalhava a calmaria das noites da Petrônio. De dia uma via repleta de lojas de materiais de construção, à noite uma via crucis para quem à luz não pode ser maldito. O último burburinho que alvoroçou a região foi o assassinato de um homem chamado Lino Borges, advogado, cujo corpo foi encontrado numa manhã de terça-feira, há cerca de um mês, deitado numa poça de sangue. Dizem que o semblante do homem estava tranquilo apesar das três facadas afundadas na barriga. Nos jornais, dia seguinte, as páginas policiais tratavam o caso como mistério, ainda seria investigado. A verdade é que o homem frequentava o hotel para cavalheiros há mais de dois anos. A família não sabia e, envergonhada, se esforçou para abafar o caso. Que vergonha seria se a mulher e os filhos do defunto soubessem que seu amado Lino pagava 30 ou 50 reais para acender um pouco a vida com Evandro. Dependia do combinado, mas, não importasse o valor, Lino pagava por brutalidade, por algo mais do que masculino. Na noite em que Evandro não se encontrava, no entanto, o homem foi esfaqueado. Que azar o de Lino. Na espelunca de alugar quartos ninguém tocava no assunto. A mancha de sangue seco está lá, não mais que a trinta metros do costumeiro ponto de encontro. Alguns contam que o pai de família se desentendeu com um marginal ao combinar sexo por um bocado de pó.

Continua…

Aniversário, que loucura

Passei pelos vendedores de memórias que enfeitam e conturbam o caminho entre a Glória e a Lapa. São homens e mulheres que dispõem objetos sem alma em panos encardidos na calçada, aparentemente sem valor algum, objetos sujos, usados, mortos. Telas indiscutivelmente mal pintadas, trecos, louça. Bonecas assustadas, potes de cosméticos, peças eletrônicas, molduras de um passado que não pertenceu aos vendedores de aparência anestesiada – alguns transpiram malandragem. Eu caminhava do Catete até desembocar na Rua da Lapa, onde estão concentrados esses homens e mulheres, pensando dentro de minha própria bolha, ruminando as dúvidas de quem assiste de longe ao mercado de memórias impertinentes. Poucas vezes vi alguém demonstrar interesse por algum objeto – não ousaria chamá-los de produto, um ou outro jovem em corpo de velho buscando saber o preço de um livro de carcaça ainda mais velha. Não custaria mais de três reais, imagino. Olhei de relance para a capa de um DVD da Diana Krall, ao vivo em Paris; é tudo tão estranho, sapatos que não formam par, calcinha de criança, tufo de peruca. Fico intrigado, mas não o suficiente para interromper o percurso, diminuo o ritmo, no entanto.

Vou diminuir o ritmo:

É sábado, meu aniversário, exatamente quando eu nasci, só que 27 anos depois. Sigo caminhando até a Rua da Lapa para resolver o que tenho a resolver. No caminho, vejo os objetos organizados à própria sorte no chão onde piso, onde as travestis pisam, ondes os homens passam afrouxando a gravata, onde o velho escarra, onde a moradora de rua senta para amamentar. Preciso controlar o ritmo. Um dos vendedores resplandece ao sol, deitado, a cabeça apoiada numa trouxa, ele lê um livro concentrado, o corpo sem camisa resiste ao calor, não derrete. Os ‘produtos’ estão lá. De onde teriam vindo? Será que alguém sente saudades de algum daqueles objetos? Daquele velho camafeu, talvez? Seria ele lembrança de uma avó doente? De uma mãe igualmente morta? Uma relíquia desgostosa de um casamento ingrato? Bodas de prata? Eu sinto saudades. Hoje, completo 27 anos e tenho saudades das coisas que não existem, que não tiveram alma, que carecem de alma como todos aqueles objetos. As saudades das quais me refiro não tratam do passado. Este, por mais que fisgue o peito de tempos em tempos, está bem acomodado nos momentos sem retorno, está lá, no lugar das coisas que não são eternas. Eu falo que tenho saudades das coisas que escolhi não viver, de tudo que poderia ter acontecido e não aconteceu. Essas saudades, das quais estou me repetindo, por favor, não confundam com arrependimentos – deste mal não sofro. Digo que, infelizmente, é inevitável pensar nas pessoas que eu poderia ter conhecido, nos efeitos das mensagens que eu poderia ter enviado, nos outros ofícios dos quais eu poderia ter feito dinheiro, nos olhos que eu deixei de olhar nestes 27 anos, nos nãos. É inevitável – e não é ruim, mesmo que um pouco melancólico. Os objetos, no entanto, diferentemente das minhas saudades, tiveram um passado, já saborearam o gosto de ter alma. Têm muito mais forma. Não têm passado as saudades do que não aconteceu.

Sim, eu sei que ainda sou jovem. Preciso diminuir o ritmo e as vírgulas, deixar tudo mais fluido.

Tento me livrar das pretensões de sábado, tarefa muito difícil. Os sábados, sempre pretensiosos dentro de minha cabeça, são os dias nos quais tento seguir a mesma rotina quando dou sorte de não trabalhar – nada mais terrível do que trabalhar aos sábados. Acordo cedo; sempre acordo cedo para ter a noção de que o sábado é longo e poderoso. Tomo café da manhã em alguma padaria e volto imediatamente para casa, quero descansar às luzes claras, curtir esparramado no sofá, pés pendendo pelos braços macios sem encostar no chão. Isso até a hora do almoço, quando o alvoroço do estômago me conduz ao restaurante. Descanso até umas 18 horas, até começar a segunda parte do meu dia. Se é um sábado chuvoso, vou à academia. Um sábado soberano, como devem ser todos os sábados, ando de bicicleta ou corro no Aterro, sempre no Aterro – energizo-me. Sob o horário de verão, atraso para às 19. Depois disso, retorno e começo a me preparar mentalmente para a terceira parte, a madrugada, pretensiosa e longa, larga, com ar pesado de encher pulmões ansiosos. Os sábados, sim, são maldosos como falam das sextas-feiras.

Quebrei a rotina, ainda era bem cedo quando eu caminhava até a Rua da Lapa.

Os objetos mortos estavam por toda parte, eu só precisava resolver o que tinha a ser resolvido, trajeto curto entre o Catete e a Lapa, porém, no meio do caminho, me vi perdido num cemitério de objetos mortos sob os olhares displicentes de seus homens e mulheres, seus donos mortos, dinheiro para fazer uma fezinha, se embebedar, vestir a criança com fralda, pagar por sexo. Ainda preciso diminuir o ritmo. Escolho parar. Finjo interesse, olho para as tranqueiras – visão de raio-x. É meu aniversário, que loucura, 27 anos, é muito cedo, estou olhando para porcarias organizadas no chão da Rua da Lapa. Penso em comprar alguma coisa. Ao lado, um cão tenta se aproveitar da doçura de uma cadela, ela o coloca em seu devido lugar, rosna, ele cai fora. Penso na Elza Soares e acho graça. Um vendedor se aproxima, o que estava deitado em berço esplêndido, ele não derrete ao sol do sábado.

– E aí, irmão, vai querer alguma coisa?
– Tô olhando, obrigado.

Eu parei, mas não consigo diminuir o ritmo, estão percebendo? Vou tentar mais uma vez:

É meu aniversário, completo 27 anos neste sábado de 25 horas de vida. Ainda não corri no Aterro como faço diariamente, mas sinto-me energizado. Os objetos mortos à minha frente não têm energia, mas são inofensivos, mortos. Repetição. Estou cheio de vida. Pergunto quanto custa um dos objetos: 10 R$. Compro por R$ 5. Fechado. Dou alma àquele objeto. Ele é meu, não está mais morto. Volto para casa.

É a última:

Sigo meu percurso de volta para casa, eu e meu objeto, não estou sozinho. Vou pensando no que eu gostaria para um novo ano, o que seria bom que acontecesse neste caminho aos 28. Uma velha me pede as horas. Eu respondo feliz porque, como todos sabem, eu adoro as velhas e elas me adoram. Continuo. Neste novo ano, eu me desafio a dar mais vida às coisas mortas, quero dar menos espaço para as saudades descritas ali em cima. Eu e meus irmãos, alguns de vocês, os que já conquistei, quero estar junto, dizer menos nãos. Deixar as coisas fluírem, conhecer o lado bom – e só o lado bom – da complacência. Quero dar vida às coisas mortas, vocês (e as corridas no Aterro) me dão energia de sobra para isso. Quero dar vida às coisas prematuras, pré-uterinas, mortas. Que loucura.

É tão estranho

Vim chutando a fruta que parece manga espada desde o início da rua do Catete; não foi tarefa fácil, ela rodopiava num desengonço sem rumo: cada chute como tiro no escuro. Entre os para lás e para cás eu, somente eu, e o percurso. Diferente da fruta, desnuda pelo ralar do chão, eu seguia caminho com partida e chegada, todo definido, reto, exato, esforçando-me para fazê-la rolar dentro dos limites do meu destino: beirava o meio-fio e lá estava eu, pronto para resgatá-la de sua liberdade de fruta caída.

Os percursos solitários, vejam bem, são os termômetros do dia a dia – não falo sobre o caminhar sem rumo, puro devaneio. Trato da linha entre os dois pontos, partida e chegada, estão se ligando? Basta lembrar do caminho até em casa na tarde daquele primeiro beijo, do caminhar cambaleante ao anoitecer depois de um bloco de Carnaval com os amigos, do trepidar do ônibus ao fim de uma discussão no trabalho. São eles, os percursos, inquestionáveis indicadores invisíveis das coisas que gritam em silêncio. Por vezes gritam dentro do peito, alargam ou espremem, por outras gritam bem dentro da cabeça. Às vezes silenciam. Rumar sozinho esclarece ou confunde ainda mais. Revela, porém.

Eu chutava a fruta-manga espada desde o início da rua do Catete, vinha de algumas cervejas na Praça São Salvador e havia encontrado Carolina. Ela estava rodeada de amigos, riso solto como de costume, o corte de cabelo novo lhe caiu muito bem. Fazia tempo que não nos víamos, cinco meses para ser mais exato – desde que oficializamos o fim de nós dois. Numa encarada de três ou cinco ou dez segundos, sorrimos um para o outro sem mostrar os dentes – foi estranho não mais ter a chave de seus segredos. Antes, bastava um piscar de olhos para eu saber o que passava naquela cabeça, o que ela sentia ou queria dizer, eu me adiantava com respostas, motivo para brigas ou gargalhadas. Nada mais. Teria ficado contente em me ver?

Exagerei na força do chute, a fruta levou bico de raspão e bateu no pneu murcho de uma bike Rio, busquei-a perdendo um pouco a paciência e continuei o caminho até minha casa. Carolina e eu por muitas vezes fizemos companhia um ao outro neste percurso, foram mais de cinco anos de namoro, dois deles sob o mesmo teto. Ao terminar comigo, disse que há meses já não estávamos juntos, coisa de sintonia. Eu concordei, entramos no papo da distância e do trágico fim comum dos relacionamentos, ela disse ter conhecido um cara no curso de hebraico que teimava em não sair de sua cabeça. Eu disse que tudo bem, que a vida é livre – como costumo dizer -, com a garganta cheia de nós para engolir. Ela achou insensível: ‘viu como você não se importa mais?’. É, não me importo, blindei-me num casulo. Desde aquele dia, foram apenas duas ou três ligações telefônicas, algumas mensagens no WhatsApp e a exclusão mútua nas redes sociais para ‘ajudar a cicatrizar’ – poderíamos um dia ser amigos.

Eu bebia cervejas com os meus. Carolina bebia com os seus, antes estaríamos todos juntos, cada um na sua devida distância. Seria maduro cumprimentá-la? Não estava com vontade e, naquele momento, não acho que deveria ter. Ela e eu fomos muito felizes juntos, mas hoje éramos apenas conhecidos. É tão estranho. Despedi dos meus amigos – acordaria cedo no dia seguinte – e, sem Carolina à vista, segui meu percurso. Fui chutando uma fruta verde até o portão de casa, Carolina a cada bico, Carolina a cada rodopio, Carolina a cada vez que a fruta ralada insistia em tentar passar pelas grades dos bueiros da rua do Catete: minha cabeça dava sinais de cansaço – Carolina.

Abri o portão, virei-me para a rua e chutei longe a fruta-manga espada, rolando até perder de vista.

A tensão que ninguém vê

Alexandre Rufião fitava Wilsin com apetite nos olhos – fome de uma vida toda. Com o pretexto de levar Pretão para passear, encoleirava o labrador e descia os três lances de escada do prédio em direção ao boteco na esquina da Andrade. Mantinha cantinho cativo, apoiava as costas contra a parede e descansava o chope na única mesa alta do lado de fora do bar, daquelas que pedem cadeiras igualmente altas e desconfortáveis. Rufião nunca sentava. Chope atrás de chope, o cão deitado não parecia se incomodar.

Às 20h, Wilsin largava o serviço no boteco e sentava à mesa logo à frente esperando carona do irmão que sempre tardava em chegar. Tomava umas geladas, tudo por conta do patrão, seu Zé, gente boníssima. Wilsin, Wilson de Sousa Neto, chegou da Paraíba depois de três anos no serviço militar. Aqui conseguiu emprego e namoradinha, Danielle, grávida de cinco meses. O moleque, tão moleque, já estava pronto para ser pai. Rufião, discreto, encarava o jovem descolado, de risada frouxa, chinelo nos pés e boné vazando da cabeça. Não continha o gelo na barriga e os latejos por dentro da bermuda larga quando trocavam olhares – apertava a coleira como num alívio. Bastava avistar o garçom fora do batente pra se sentir moleque novamente, logo ele, Alexandre Rufião, casado há 26 anos e pais de duas meninas. A mais nova, aos 22, batia fácil idade com Wilsin.

O jovem não era bobo, estava ligado nos cortejos invisíveis do coroa. Retribuia sorriso manso, escapava o rabo de olho na direção de Rufião. Ninguém percebia nada. Largava o chinelo e subia um dos pés à beirinha da cadeira baixa, abraçava a perna com o braço magro e mexia nos dedos como para tirar ponta de unha – momento ideal para mandar olhar cabisbaixo e tentação de canto de boca. Por vezes levantava e avançava em direção a Rufião, passava as mãos na pelúcia de Pretão numa proximidade que o homem desconcertava, a testa molhava de suor.

– Ele é manso pra caramba né? – É, já tá velho. Tá velho, né, Pretão?

Rufião virava o copo pedindo por mais chope gelado.

Dia após dia, por mais de um ano, lá estava Rufião na esquina da Andrade, em pé, na companhia de Pretão; a barriga inchada de chope. Wilsin se fazia de bobo, curtia um papo com os outros garçons que ainda estavam de serviço, levantava, espreguiçava – Rufião enlouquecia – mandava zap para Danielle, chamava os companheiros pra ver a tela do celular, caia na risada. Vez em quando ligava a atenção no coroa, desviava, achava graça, chegou um dia a morder os lábios, Rufião corou sem conseguir manter olhar fixo. Dava em nada, até uma quinta-feira não tão qualquer, quando o coroa chegou ao boteco pontualmente às 20h na ânsia de ver Wilsin. Foi pego de surpresa, ouviu que o jovem pediu as contas e voltou para a Paraíba, ganhou puxadinho para morar com Danielle. Foi como um soco forte. Encerrou o chope, levantou a voz e gritou por uma branquinha.

– O que é isso, seu Rufião? O senhor bebendo cachaça? – respondeu seu Zé, pronto para caprichar na dose.

Rufião e Pretão não voltaram para casa naquela noite.

Dez minutos de atenção

Lá pelas tantas, matando as saudades, depois da gelada com os homens que vez em quando se arriscam numa fezinha, encontrei um dos maiores vilões do Catete. Nos abraçamos, mais até do que eu gostaria, ele questionou meu paradeiro e disse que nunca mais havia me visto por aquelas bandas. Eu me adiantei dizendo que estava de folga, passei um tempo fora para sentir falta daquilo tudo, mas estava de volta; não largo o osso, tá ligado? Elogiou minha camiseta, perguntou se eu não arranjava uma para ele matar no peito, fim de ano, sabe como é, fica tudo mais difícil com pouco bico. Me pediu um cigarro, disse que gosta de mim porque não olho ninguém de cima para baixo. Dei dois.

Enquanto ele baforava a fumaça – já com um dos cigarros acomodado na orelha, outro dos vilões passou por nós dando uma encarada. Trocaram olhares – não devem se bicar. O cara é daqueles que prestam serviço da alçada do Estado, já que a onda aqui é privatização a la brasileira. Ele cuida da área, afasta as ratazanas, tem meu respeito, homem sério cuja cara já faz borrar as calças de quem pensa em cometer pequeno delito. Diz que anda armado. Seguiu seu caminho no balançar da corrente dourada enrolada no punho.

Eu e meu parceiro continuamos matando as saudades, perguntou se eu estava precisando de algum serviço, coisa de pintura, pequeno reparo. Percebi que estava mais magro; respondi que não, mas caso soubesse de algo avisaria. O papo fluiu como sempre fluiu, eu, desinteressado, ele falando sem parar, conexão olho a olho, sem desvio. Eu me afastava um pouco numa tentativa de desviar os pingos de saliva que voavam em minha direção, um acertou o canto do meu lábio em cheio, que merda! Tava na hora de seguir para casa. Disse que precisava ir embora, já estava tarde e o dia seguinte começava cedo. Apertamos as mãos, mais um abraço demorado, ele precisava de um banho, de roupas limpas. Se despediu feliz por saber que vamos voltar a nos esbarrar mais vezes, vai filar cigarro, quem sabe um pouquinho da cerveja, dez minutos de atenção, como sempre. Sem saber exatamente o porquê, eu também estava feliz por ter certeza que vamos sempre nos ver por aí.

Pintos na sacola

Rec rec rec. O velho girava os pinos de plástico com os dedos enrugados, e os pintinhos efervesciam no chão. De pulinho em pulinho os brinquedos de corda, tão vagabundos, disparavam aleatórios até que cessassem o movimento, dispersos. Raramente paravam em pé; não poderiam ser fabricados em lugar do mundo que não a China. Taiwan, talvez. O trabalho era ingrato tanto para os chineses – eu pensava – quanto para o velho vendedor na porta da galeria Condor, no Largo do Machado. Já em idade avançada, era daqueles velhos que a gente olha e lamenta a labuta. E que labuta! O homem, curvado, abaixava de minuto em minuto para dar corda novamente nos plumadinhos amarelos, tão desajeitados, feiosos. Alguém compraria pintinhos de dar corda? Rec rec rec, o velho dava corda abaixado, apoiava as mãos no joelho e voltava a oferecer a quem passava, como num martírio de pagador de promessas. No braço uma sacola – decerto um galinheiro inteiro. No outro, cartela de remédios e receita do SUS. Através das lentes profundas dos óculos o homem parecia ter a idade muito mais avançada do que aparentava distante. A pele murcha muito branca trazia à tona o verde das veias no rosto, e os pontos brancos de barba mal feita, branco-neve, eram mais espessos que os poucos fios restantes na lateral da cabeça. Poucos dentes também sobravam na boca do velho. As pessoas passavam para lá e para cá como se o velho fosse tão invisível quanto os pintinhos são para o mundo.

A mulher de cabelos loiros passou apressada.
O mendigo mordeu um pedaço de pão.
O jovem espirrou.
O homem falava ao celular.
A criança precisou de colo.
A velha comia kibe.
O trocador de ônibus correu.
Os adolescentes não pegaram o panfleto.
Amarrado ao poste, o cão implorava pela dona na porta da farmácia.

Rec rec rec, os pintinhos pulavam até cair.