Dona Elizete

Dona Elizete morava no 801, porta a porta com o meu saudoso 803, na Ferreira Viana. Era velha saidinha, vivia só no quitinete bem pequeno e muito caprichoso. Já devia estar na casa dos 80, mas as passadas curtas e ligeiras davam um sopro de jovialidade aos cabelos coloridos de castanho envelhecido. Sempre nos encontrávamos no elevador, eu puxava cortês a porta para dona Elizete, ela agradecia. Certo domingo, me perguntou aonde eu ia tão cedo, disse que jovem acorda tarde no domingo.— Ao jardim do Palácio do Catete — respondi. A velha soltou gargalhada de olhos arregalados e falou que aquilo lá era coisa de velho, tinha horror. — Então eu já sou velho — retruquei sorrindo.

Aos sábados ensolarados, magrinha, descia a rua toda serelepe puxando seu carrinho rumo à feira do Largo do Machado. Caso chovesse, deixava a feira para dia de terça na rua Governador Irineu Bornhausen. Não importava o dia, o carrinho ia vazio e voltava abarrotado de frutas, verduras, pedaços grandes de queijo minas e peixe fresco. Que apetite, o da velha! Semana sim semana não, no braço que não arrastava as compras, dona Elizete equilibrava uma dúzia de ovos — ovo caipira, sem hormônio, a gema da cor de uma laranja —. Pendurados no antebraço, mais sacolas-contingente: deixavam marca plástica no antebraço da velha. Recebia quase nada de visita, eu pensava. Como comia, dona Elizete! Voltava da feira como rainha do pedaço, quando em quando a rodinha plástica agarrava na calçada, nada demais, era esperta. Conhecia o Catete como ninguém. Cumprimentava todos os dias o dono de uma das bancas de jornal, um homem muito gordo com manchas escuras no rosto redondo — Para de fumar, menino! — fazia cara feia. Recebia de volta votos de dia bom. Os pedintes bem que tentavam se aproveitar de Dona Elizete, esperavam complacência de idade avançada, besteira. Não havia gaitado que mexesse com a velha sem ouvir resposta torta — Xô porcalhão, vá arrumar serviço! — Virava na Ferreira Viana e entrava no prédio. Ai do porteiro que deixasse dona Elizete esperando no portão. Reclamava com a síndica, escrevia carta no livro de reclamações, mas sempre deixava um agrado, um chocolatinho ou sanduíche para os ‘meninos’. Benedito, o porteiro mais novo, esperava a velha arrastar as compras pela rampa de serviço, segurava o elevador e apertava o número oito para dona Elizete entrar. Sempre reclamava do calor, mas que chuva não viesse, ela não suportava ir à feira às terças.

Percursos

Eu tenho a ligeira impressão de que as relações mais amorosas estão nos percursos. Porque no fim das contas a festa é a festa, o bar é o bar, o cinema é o cinema e o motel é o motel. Todos muito delimitados por um triângulo de normas, tradições e expectativas. Nos percursos, só a imprevisibilidade do estado natural das coisas. Ama-se muito mais no caminho de volta pra casa, até quando a casa é a mesma, do que num cinema a dois. Ama-se muito mais até o ponto do ônibus ou no trajeto até a praia. Na academia pode ser paixão, tesão, mas naquele caminho de volta para casa é onde aparece o amor – ‘A gente se vê’.

O importante, para mim, é chegar junto. É o percurso. Quando estamos lá, a gente pode até se perder no meio dos amigos, dos desconhecidos, das previsibilidades. Mas o voltar, o ir… O percorrer, junto(s), faz toda a diferença. A quantas anda o ‘cá para lá’ ou ‘lá pra cá’ com sua companheira – ou seu companheiro – é o que importa. O amor fica visível nos trajetos percorridos, dos mais triviais aos mais sofisticados. Há uns casais que, em crise, pensam em melhorar as coisas indo justamente onde as coisas são exatamente o que são (e nada além disso, se é que me entendem). A festa vai ser sempre a festa; o bar, o bar. A mesma coisa com o cinema ou o motel. Mas no caminho até a padaria, o supermercado… Na madrugada, voltando para casa… Muito louco.