Os abacaxis descascados estão em alta no Catete. Os ambulantes vendem fatias em pratos de isopor envolvidos em plástico filme ou até mesmo inteiros, despelados, embalados a vácuo. Eu sigo caminhando. De uns tempos para cá, desde quando as calçadas foram tomadas por gente que tenta sobreviver, os vendedores de fruta se multiplicaram por toda parte. Estão nas esquinas, conturbam e perfumam os caminhos. Os abacaxis descascados, porém, sempre me tiram do eixo, me deixam um pouco mais reflexivo, mais centrado no futuro das coisas. É uma tendência que extrapolou as gôndolas da praticidade do Hortifruti e chegou às ruas, ao Catete. Faz parecer que não temos mais tempo ou disposição para descascar as frutas, não estamos a fim, apenas desejamos saborear o abacaxi, sentir a acidez na boca, quem sabe comer durante o percurso até em casa. E chegando em casa certamente não queremos descascar; queremos outras coisas, não estamos ligados no trato com a fruta.
Eu sigo caminhando pelas ruas do Catete, o verão parece ter finalmente dado às caras; o céu está mais lindo ao entardecer, mas há um preço a ser pago e todos nós sabemos qual é. Eu descasco meu pensamento a cada esquina na tentativa de tirar de mim a vontade de falar as coisas, sinto como se tivesse muita coisa a falar, muitas observações a fazer, muitas coisas que ninguém nunca soube e possivelmente ninguém nunca vai se interessar em saber. Eu não consigo ficar pelado como os abacaxis que são vendidos na rua do Catete, mas não invejo os tagarelas, os que desatinam a falar; esses se perdem nas avaliações, falta autocrítica.
Um dos ambulantes, mais sofisticado, na esquina da Corrêa, dispôs ao sabor do freguês um isopor cheio de gelo onde armazena as rodelas de abacaxi junto aos cocos. “Geladinho é mais gostoso, minha senhora”, disse ele a uma velha. Ela deixou-se seduzir e comprou duas bandejas. Eu sigo a passos rápidos, como esse texto, vou descascar até onde eu conseguir, mas aviso de antemão que não vou muito longe. Sou pouco capaz. Pergunto a mim mesmo o que os responsáveis pela colheita dos abacaxis pensariam dessa dinâmica acelerada das coisas, de vender as frutas sem pele, do saborear a caminho de casa. Eu, muito ingenuamente, os imagino funcionando em um outro tempo, debaixo de um sol mais forte e portanto mais duro com a nossa pele frágil. Aperto o passo.
Acho que a sensação de que as coisas seguem em ritmo acelerado se intensifica com a proximidade do final do ano. Talvez seja por isso que os abacaxis brotem descascados no asfalto, porque os vendedores sabem que estamos com pressa, eles também estão. Eu, já no fim da rua do Catete, penso em escrever sobre a correria do final de ano, as confraternizações, presentes, a felicidade se fazendo imperativa, a concretização de metas e realizações, mas tudo isso fica um pouco confuso na minha cabeça e eu não gosto de dificultar ainda mais as coisas. Tampouco quero ser chato – se é que já não sou escrevendo essas coisas por aqui. Sigo caminhando até parar em um dos ambulantes cuja vida é ganha com a venda de frutas no Catete e peço um abacaxi descascado, comprimido por um plástico que o envolve por completo. Penso em levar também a mandioca — ela igualmente descascada boia cortada dentro de um saco translúcido cheio de água. Percebo que não saquei dinheiro suficiente, sigo a caminhada com meu abacaxi claustrofóbico no vácuo.
Eu sou dos que ficam mais reflexivos com a proximidade do final de ano, sem dramas, mas pensando no desenrolar das coisas. Há algumas semanas, uma amiga por quem tenho muito apreço me perguntou se eu tinha a sensação de eu que estava vencendo. Eu quis que ela me explicasse melhor a pergunta para que pudesse responder com mais precisão, mas ela retrucou com um “sei lá, vencendo”, e me desarmou por completo. Eu fui evasivo e disse que talvez não haja nada a ser vencido, que as coisas são como são e que a vida pode ser apenas um acumulado de vitórias e derrotas. Ela então perguntou se as coisas iam como eu as imaginava que devessem ir, eu entendi mais ou menos como se eu estivesse satisfeito com o rumo das coisas, do todo. Eu não soube responder, disse apenas que tudo ia bem, estava tudo em ordem dentro da normalidade e do conforto.
Lembrei dessa conversa enquanto levava meu abacaxi para casa num fim de tarde quente. Pensei em deixá-lo na geladeira por algumas horas antes de comê-lo por completo assistindo à TV. Durante o percurso, esse que não me preocupo em ilustrar com imagens, dei por pensar em desejos para 2019, mas tenho grande dificuldade em projetar vontades e estabelecer metas, o futuro pra mim sempre parece muito distante, não sou um bom planejador, nem para as viagens de férias consigo estabelecer planos com tanta antecedência. Mas eu não quis forçar muito o pensamento, vocês estão ligados? Algo como quando a gente não deixa o pensamento fluir propositalmente, desvia a atenção para algo que é físico, um poste, um cão mijando na própria sombra. Cheguei em casa.
Tirei o abacaxi da geladeira algumas horas dali, livrei-o do vácuo e fatiei em rodelas — comeria até o seu centro, mais duro, como vocês sabem. Foi tudo muito prático, não havia o desafio da casca, não havia a coroa verde cortante, nada. Foi mais ou menos aí que eu senti uma vontade muito clara de estar mais descascado em 2019, mas livre de algumas coisas, de algumas pessoas e sensações. Porque não parece haver muito tempo para preocupações com a dureza de algumas situações na vida ou com a dureza de sustentar (ou aparentar) uma casca. Sentado no sofá, comendo o abacaxi bem gelado, não liguei a TV para, agora sim, dar liberdade ao pensamento. Pensei se essas cascas da vida, como no caso do abacaxi, surgem em virtude da nossa vulnerabilidade. Fui pensando nisso para que esse texto fizesse algum sentido. Ora, e se alguém por um acaso me confrontar com a necessidade das cascas em virtude de uma suposta proteção? Imagino que a casca do abacaxi o proteja, mas as nossas parecem dificultar e muito o estabelecimento de melhores relações. As nossas parecem muito pouco naturais e só escondem o nosso centro, escondem muita coisa que pode ser exposta sem culpa. E qual, afinal, seria o grande problema de estar mais vulnerável?
Minha amiga, aquela por quem tenho muito apreço – a que conversou comigo sobre vencer na vida -, dia desses saiu de um grupo no WhatsApp porque não foi convidada para um evento – decerto algum de nós a esqueceu de adicionar no Facebook, algo assim, e ela se sentiu muito ofendida. Saiu sem falar nada, imaginei que estivesse esperando alguém para procurá-la com pedidos de desculpas, um comportamento que eu não entendo muito bem, mais ou menos como birra ou orgulho, não sei. Eu disse que parasse de bobeira, que havia sido algo muito trivial, que relaxasse. Ela, enfim, entendeu. É uma grande amiga. Mas, pensando agora, depois de comer meu abacaxi, diria que ela também precisa de um 2019 mais descascado. Que ela, eu, todo mundo, com nossas diferentes cascas, precisamos de um 2019 mais despelado não por causa de uma correria de final de ano, quando precisamos aparentar mais felicidade, mas sim porque não parece haver muito tempo, não é? Os abacaxis, eles sim, descascados ou não, têm todo o tempo do mundo.
Essa quantidade de palavras pra dizer que a gente está sempre numa correria muito louca, mas que não leva muito tempo para perceber que há coisas e pessoas e sensações e comportamentos que não valem a pena. Por um 2019 mais descascado. Que viagem!
Por um 2019 mais descascado. Que tenhamos tempo para cozinhar os abacaxis, pois, caso contrário, precisaremos de mais tempo para curar as nossas aftas. Essa casca surgiu para prevenir o aparecimento de novas lesōes. Afinal de contas, os abacaxis têm todo o tempo do mundo, não é mesmo?