Direções

Dica número um dos guias de viagem, especialmente os que versam países do norte, é de que o viajante deve permitir perder-se pelas ruas das cidades, deixar se envolver pelos encantos de tudo que é novo e diferente, bonito. Mas, mesmo de férias, a preocupação com as direções – sempre elas, se faz presente a todo instante. Logo nas férias.

Eu estive recentemente em Praga, na República Checa, e uma das minhas boas impressões da capital se deu pela facilidade com a qual é possível se localizar nas ruas, tanto na cidade histórica quanto na Praga renovada, mais moderna. O meu cérebro matemático, tão burro, exige de mim um esforço monumental para interpretar as direções dos mapas em função dos pontos turísticos, restaurantes, do caminho de volta para a hospedagem. Em Praga, tendo o rio Elba como referência, meu cérebro ficou um pouco mais relaxado, frouxo, e eu pude me preocupar menos com os caminhos percorridos. Eu andava pelas ruas traçando as linhas retas criadas pela minha mente, sempre com as referências que funcionavam melhor para mim. Eu imaginava meus amigos talentosos com números, como o Daniel, tirando de letra os caminhos da cidade, já sacando de todos os desvios e atalhos. Eu, pouco habilidoso com as noções de espaço, em vez de virar na quinta ou na segunda rua – não sei, tornava tudo visual. Para retornar ao apartamento da Alena, onde me hospedei, eu atravessava a mais feia das pontes, certo de que ela me levaria à rua que escolhi ser a principal por nela estarem cravados os trilhos do tram (ou bonde, ou VLT). Depois disso, eu tinha que entrar à esquerda na esquina do sex shop “Erotic City”, enorme, e andar até a pichação “abortion sucks”, quando eu deveria virar à direita. Ali eu estaria “em casa”. Eu pensava que Daniel, por exemplo, chegaria muito mais rapidamente com apenas uma olhadela no Google Maps. Eu tinha a noção que percorria caminhos por demais geométricos, quadrados como os resquícios da arquitetura comunista, eram poucas linhas tortuosas, mais espertas.

Eu estou escrevendo isso porque estou meio cansado. Nós voltamos de férias e temos que retomar as direções, não as que tratam do plano espacial, mas sim as que conduzem a vida para o que ela é – ou para o que ela precisa ser. E me parece cada vez mais difícil mudá-las, transformá-las em outras direções. Às vezes eu gostaria de seguir por direções opostas às que eu estou acostumado a seguir. É muito difícil perdê-las, transformá-las. No trabalho, em casa, nas redes sociais, as direções precisam corresponder às expectativas de tanta coisa, de tanta gente. Não tem sido fácil para mim e acredito que também não esteja sendo fácil para você.

Eu queria escrever mais, mas não sei escrever o que eu sinto, só o que eu vejo. Então vou terminar:

Ontem eu parei para comprar goiabas. Elas não estavam nos meus planos, mas no caminho em direção ao Largo do Machado, um carrinho de madeira cheio delas me saltou os olhos. Amareladas ou mais verdinhas, molhadas, refletiam o sol quente de outono. A água que as hidratava espirrava de uma garrafa de dois litros de refrigerante com a tampa perfurada, um regador improvisado cuspindo no compasso do apertar das mãos do vendedor. Cinco por dez reais, informou o rapaz, um desses moleques de pouca idade, magro e sem camisa, o celular viscoso de suor preso à barra da cueca aparente – uma ressignificação de Calvin Klein com um bocado de valor. O umbigo vazava como se não comportasse o pouco recheio do corpo.

O vermelho das entranhas das goiabas-vitrine já havia me conquistado, nem pestanejei. Eu pedi auxílio para escolhê-las, comeria todas em dois dias, informei ao rapaz, dispensando as mais verdes. Ele, de prontidão, ostentando óculos de lente azul – desses modernos que refletem o que se vê -, catava as bichanas, as apertava com delicadeza, iam diretamente do carrinho para uma sacola de plástico translúcido, das que não têm alça e ficam dispostas em rolos para a pesagem de frutas e legumes nos supermercados. Me incomodou imaginar o caminho até em casa segurando uma sacola sem alças, punho cerrado para carregar minhas goiabas. Elas valeriam o sacrifício.

No tempo em que movimentei o braço para tirar a carteira do bolso traseiro da bermuda, o rapaz olhou para minha cara e disse: “Tá triste? Fica triste não, doutor, alegria é a melhor coisa que existe”. Eu não soube o que responder. Os óculos dele me refletiam, penso que triste. Primeiramente imaginei culpar minhas sobrancelhas, desenhadas em ligeira queda desde que nasci. Depois me entendi triste. Um ontem triste. Eu agradeci ao vendedor e rumei ao meu apartamento, certo para onde eu queria ir, mas sem direções. Punho cerrado para carregar minhas goiabas.

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