Aniversário

Protético prótese aparelho orçamento grátis. Dentista clareamento. Protético prótese orçamento grátis. Embalada nesse mantra a mulher protege os miolos dos raios de sol embaixo da marquise de uma loja de roupas femininas na esquina de uma das transversais da rua do Catete. Segura uma prancheta contra o corpo enquanto oferece panfletos do patrão a quem passa por ali, todos os dias. É meu aniversário, são 29 anos, eu estou voltando da academia e a mulher me oferece um panfleto como um presente, um mimo, ensaia um sorriso em dissonância com a expressão dos olhos tristes. Eu aceito. Num primeiro momento, acredito que o suor no rosto seja nossa única coisa em comum. Ela está em pé há horas oferecendo serviços dentários, protege-se como pode do calor. Combina calça preta com colete preto, o tecido é o mesmo e parece ser de pouca qualidade, daqueles que chupam o líquido que sai do corpo revelando o verdadeiro cheiro daquilo que a gente é: carne. Eu também estou suado, mas a água que sai do meu corpo faz parecer um capricho.

Aceito um panfleto como fiz ontem e como farei amanhã, tudo está como costuma ser, a exceção é que faço aniversário, agora tenho 29 anos. Minha carne tem 29 anos, funciona há 29 anos sem descanso, as veias se alargam com os jatos de sangue há todo esse tempo, não sei, tudo parece muito impressionante – mais impressionante ainda é o funcionamento da carne da cabeça, ela cria a mente e dela saem todas as coisas. É nela, na minha mente, que a mulher-propaganda reverbera quando passo pela rua do Catete. Ela segue distribuindo panfletos, não imagina nada disso, protético prótese aparelho orçamento grátis, tampouco sabe que é meu aniversário, dentista clareamento, não faz ideia que eu agora tenho 29 anos e que até aquele momento, protético prótese orçamento avaliação, várias pessoas queridas já haviam me desejado felicidades na vida. Parabéns, Fred, felicidades!

Eu volto da academia cansado, não mais cansado que uma mulher que distribui panfletos numa das esquinas do Catete; penso nas pessoas queridas que me desejaram parabéns e felicidades na vida. A vida, no fim das contas, descontados os momentos de euforia e tristeza, desconsideradas as grandes viagens e festas inesquecíveis, tem muito desse percurso, entre minha casa e a academia e o mercado e o bar e o restaurante. Tem muito da mulher que oferece panfletos e que todos os dias, todos eles, reverbera na minha mente. A minha vida é essa mulher e é também o mendigo com a perna inchada, é o rapaz bonito que veste a propaganda de uma loja de vinhos, é a árvore na calçada cuja raiz levanta o asfalto, é o cão da vizinha que grita como um bebê, é o grafite na parede do palácio, a atendente que se oferece à cor dos meus olhos na lanchonete, a velha surda do 507, é a poça que se forma próxima ao coreto modernista no Aterro, é o que vocês escrevem por aqui e eu leio, é também o que eu evito ler. Agora eu tenho 29 anos e vou entendendo melhor as coisas, estão ligados? E vai ficando tudo mais interessante quando eu percebo que o que temos em comum, eu e a mulher-panfleto, vai muito além do suor no rosto, é uma vida. E ela nada mais é, como disse Vinicius de Moraes, “uma tarde sempre a esquecer”. A gente deve procurar valorizar mais isso. Eu sigo tentando.

Quero agradecer a todos os desejos de felicidades pelo meu aniversário. A torcida de vocês está funcionando. Muito obrigado!

Desapego

Os abacaxis descascados estão em alta no Catete. Os ambulantes vendem fatias em pratos de isopor envolvidos em plástico filme ou até mesmo inteiros, despelados, embalados a vácuo. Eu sigo caminhando. De uns tempos para cá, desde quando as calçadas foram tomadas por gente que tenta sobreviver, os vendedores de fruta se multiplicaram por toda parte. Estão nas esquinas, conturbam e perfumam os caminhos. Os abacaxis descascados, porém, sempre me tiram do eixo, me deixam um pouco mais reflexivo, mais centrado no futuro das coisas. É uma tendência que extrapolou as gôndolas da praticidade do Hortifruti e chegou às ruas, ao Catete. Faz parecer que não temos mais tempo ou disposição para descascar as frutas, não estamos a fim, apenas desejamos saborear o abacaxi, sentir a acidez na boca, quem sabe comer durante o percurso até em casa. E chegando em casa certamente não queremos descascar; queremos outras coisas, não estamos ligados no trato com a fruta.

Eu sigo caminhando pelas ruas do Catete, o verão parece ter finalmente dado às caras; o céu está mais lindo ao entardecer, mas há um preço a ser pago e todos nós sabemos qual é. Eu descasco meu pensamento a cada esquina na tentativa de tirar de mim a vontade de falar as coisas, sinto como se tivesse muita coisa a falar, muitas observações a fazer, muitas coisas que ninguém nunca soube e possivelmente ninguém nunca vai se interessar em saber. Eu não consigo ficar pelado como os abacaxis que são vendidos na rua do Catete, mas não invejo os tagarelas, os que desatinam a falar; esses se perdem nas avaliações, falta autocrítica.

Um dos ambulantes, mais sofisticado, na esquina da Corrêa, dispôs ao sabor do freguês um isopor cheio de gelo onde armazena as rodelas de abacaxi junto aos cocos. “Geladinho é mais gostoso, minha senhora”, disse ele a uma velha. Ela deixou-se seduzir e comprou duas bandejas. Eu sigo a passos rápidos, como esse texto, vou descascar até onde eu conseguir, mas aviso de antemão que não vou muito longe. Sou pouco capaz. Pergunto a mim mesmo o que os responsáveis pela colheita dos abacaxis pensariam dessa dinâmica acelerada das coisas, de vender as frutas sem pele, do saborear a caminho de casa. Eu, muito ingenuamente, os imagino funcionando em um outro tempo, debaixo de um sol mais forte e portanto mais duro com a nossa pele frágil. Aperto o passo.

Acho que a sensação de que as coisas seguem em ritmo acelerado se intensifica com a proximidade do final do ano. Talvez seja por isso que os abacaxis brotem descascados no asfalto, porque os vendedores sabem que estamos com pressa, eles também estão. Eu, já no fim da rua do Catete, penso em escrever sobre a correria do final de ano, as confraternizações, presentes, a felicidade se fazendo imperativa, a concretização de metas e realizações, mas tudo isso fica um pouco confuso na minha cabeça e eu não gosto de dificultar ainda mais as coisas. Tampouco quero ser chato – se é que já não sou escrevendo essas coisas por aqui. Sigo caminhando até parar em um dos ambulantes cuja vida é ganha com a venda de frutas no Catete e peço um abacaxi descascado, comprimido por um plástico que o envolve por completo. Penso em levar também a mandioca — ela igualmente descascada boia cortada dentro de um saco translúcido cheio de água. Percebo que não saquei dinheiro suficiente, sigo a caminhada com meu abacaxi claustrofóbico no vácuo.

Eu sou dos que ficam mais reflexivos com a proximidade do final de ano, sem dramas, mas pensando no desenrolar das coisas. Há algumas semanas, uma amiga por quem tenho muito apreço me perguntou se eu tinha a sensação de eu que estava vencendo. Eu quis que ela me explicasse melhor a pergunta para que pudesse responder com mais precisão, mas ela retrucou com um “sei lá, vencendo”, e me desarmou por completo. Eu fui evasivo e disse que talvez não haja nada a ser vencido, que as coisas são como são e que a vida pode ser apenas um acumulado de vitórias e derrotas. Ela então perguntou se as coisas iam como eu as imaginava que devessem ir, eu entendi mais ou menos como se eu estivesse satisfeito com o rumo das coisas, do todo. Eu não soube responder, disse apenas que tudo ia bem, estava tudo em ordem dentro da normalidade e do conforto.

Lembrei dessa conversa enquanto levava meu abacaxi para casa num fim de tarde quente. Pensei em deixá-lo na geladeira por algumas horas antes de comê-lo por completo assistindo à TV. Durante o percurso, esse que não me preocupo em ilustrar com imagens, dei por pensar em desejos para 2019, mas tenho grande dificuldade em projetar vontades e estabelecer metas, o futuro pra mim sempre parece muito distante, não sou um bom planejador, nem para as viagens de férias consigo estabelecer planos com tanta antecedência. Mas eu não quis forçar muito o pensamento, vocês estão ligados? Algo como quando a gente não deixa o pensamento fluir propositalmente, desvia a atenção para algo que é físico, um poste, um cão mijando na própria sombra. Cheguei em casa.

Tirei o abacaxi da geladeira algumas horas dali, livrei-o do vácuo e fatiei em rodelas — comeria até o seu centro, mais duro, como vocês sabem. Foi tudo muito prático, não havia o desafio da casca, não havia a coroa verde cortante, nada. Foi mais ou menos aí que eu senti uma vontade muito clara de estar mais descascado em 2019, mas livre de algumas coisas, de algumas pessoas e sensações. Porque não parece haver muito tempo para preocupações com a dureza de algumas situações na vida ou com a dureza de sustentar (ou aparentar) uma casca. Sentado no sofá, comendo o abacaxi bem gelado, não liguei a TV para, agora sim, dar liberdade ao pensamento. Pensei se essas cascas da vida, como no caso do abacaxi, surgem em virtude da nossa vulnerabilidade. Fui pensando nisso para que esse texto fizesse algum sentido. Ora, e se alguém por um acaso me confrontar com a necessidade das cascas em virtude de uma suposta proteção? Imagino que a casca do abacaxi o proteja, mas as nossas parecem dificultar e muito o estabelecimento de melhores relações. As nossas parecem muito pouco naturais e só escondem o nosso centro, escondem muita coisa que pode ser exposta sem culpa. E qual, afinal, seria o grande problema de estar mais vulnerável?

Minha amiga, aquela por quem tenho muito apreço – a que conversou comigo sobre vencer na vida -, dia desses saiu de um grupo no WhatsApp porque não foi convidada para um evento – decerto algum de nós a esqueceu de adicionar no Facebook, algo assim, e ela se sentiu muito ofendida. Saiu sem falar nada, imaginei que estivesse esperando alguém para procurá-la com pedidos de desculpas, um comportamento que eu não entendo muito bem, mais ou menos como birra ou orgulho, não sei. Eu disse que parasse de bobeira, que havia sido algo muito trivial, que relaxasse. Ela, enfim, entendeu. É uma grande amiga. Mas, pensando agora, depois de comer meu abacaxi, diria que ela também precisa de um 2019 mais descascado. Que ela, eu, todo mundo, com nossas diferentes cascas, precisamos de um 2019 mais despelado não por causa de uma correria de final de ano, quando precisamos aparentar mais felicidade, mas sim porque não parece haver muito tempo, não é? Os abacaxis, eles sim, descascados ou não, têm todo o tempo do mundo.

Essa quantidade de palavras pra dizer que a gente está sempre numa correria muito louca, mas que não leva muito tempo para perceber que há coisas e pessoas e sensações e comportamentos que não valem a pena. Por um 2019 mais descascado. Que viagem!

Insônia

É como quando desembarcamos num aeroporto em outro país, e frente à esteira por onde giram as malas a ansiedade começa a se intensificar. Eu acordei assim nesta madrugada. Essa ansiedade, que não foge do controle, nasce do cansaço de horas em um voo econômico e da expectativa de boas férias. Parado ali, no aglomerado de gente de todo mundo no aguardo por suas malas largadas na esteira, muito distante da minha língua nativa, eu fico um pouco mais ansioso. A demora da mala escurece o pensamento, me imagino no hotel por um ou dois dias sem roupas limpas. Imagino a burocracia, a companhia aérea, pensar em inglês. É uma ansiedade controlada, porém. As pessoas, aliviadas, pedem licença uma a uma ao alcance de suas bagagens. Eu, olhando atento, parado ali, numa ansiedade que nasce com o cansaço. É meio assim que me senti ao acordar nesta madrugada. Não dormi mais.

Minha infância foi permeada por noites insones. Do meu quarto, eu assistia à programação do Shoptime madrugada adentro numa época em que o Ciro Bottini ainda sustentava pinta de galã e a Viviane Romanelli comandava com muito entusiasmo o meu programa favorito do canal: TV UD. Eu sonhava acordado com as fornadas de donuts e waffles feitas em máquinas modernas, coloridas, com o respingar da massa no percurso entre concha e chapa quente; as rosquinhas iam da bancada diretamente para o estômago da equipe técnica do programa. Achava graça como tudo aquilo era conduzido, tão informalmente, sempre num bate-papo com “o diretor” numa correria para vender vender vender antes que a próxima atração começasse – o consumo ainda dependia da TV. Azar o meu se o programa seguinte fosse o “Casa & Conforto”; lençóis e toalhas, ao menos naquele tempo, não me interessavam. A insônia ficava mais triste. No meu quarto não tinha TV a cabo.

As noites mal dormidas invadiram a minha pré-adolescência, quando eu passei a levantar da cama para me esparramar na poltrona da sala – eu já não tinha tanto medo de atravessar o corredor escuro. Lá havia a possibilidade da SKY, todos os filmes, Telecine, desenhos, documentários. Às tardes, eu costumava conferir a programação noturna dos canais para saber o que eu poderia assistir se porventura acordasse no meio da noite, era sempre involuntário. Foi numa dessas vezes que eu esbarrei com um dos filmes do italiano Pier Paolo Pasolini no Telecine Classic – a versão anterior do que agora é Cult. Eu tinha 12 ou 13 anos. “Salò ou os 120 dias de Sodoma” rachou meu peito em dois, eu nunca vou esquecer da sensação de atração e repulsa. Eu tinha 12 ou 13 anos.

Hoje eu acordei de madrugada e não consegui mais dormir, episódio raro visto que não sei o que é insônia há pelo menos 15 anos. Meu sono foi ficando cada vez mais profundo com o passar do tempo. Hoje, porém, foi diferente. Um pesadelo me despertou às duas da matina e não preguei o olho. Não tenho mais televisão no quarto e máquinas de waffle já não me interessam, estou satisfeito com meus poucos eletrodomésticos. Quanto à maldição de Pasolini, diluí ao longos dos anos entre personagens que vão de Gregório de Mattos a Marilyn Manson ou Glauco Mattoso a Luís Capucho. Ou Jean Genet ou Plínio Marcos ou Ozzy Osbourne. Acho que fiquei calejado – há coisas que marcam nossa vida para sempre.

Eu acordei às duas da manhã; uma insonia ligeiramente agoniada no gelo artificial do ar condicionado. Os mosquitos, recolhidos, talvez estivessem cavando novas frestas no apartamento para invadi-lo com tudo quando o verão começar. Eles, vocês sabem, não são bichos que voam por aí como tontos, sem rumo. Eles planejam tudo, os ataques, o inferno próximo ao ouvido, as manchinhas de sangue no lençol. Nesta madrugada, os imaginei sentados conspirando, dando uma trégua. Deixaram minha insônia em paz, decerto já haviam sacado que eu estava um pouco ansioso – o sangue dos ansiosos é pior, acredito. Eu, por alguns longos minutos, tentei pensar em coisas bonitas para retomar o sono, liguei o Spotify, música tranquila para adormecer. Uma viola light interrompida esporadicamente pela geladeira estalando macabra lá na cozinha. Não preguei o olho.

Decidi aceitar a insônia, pensei ser mais fácil aceitar os imprevistos da vida para que possamos lidar melhor com eles. Me coloquei no lugar de amigos que enfrentam dificuldades para dormir e desejei que estivessem dormindo tranquilamente, como se uma espécie de compensação universal equilibrasse o estado das coisas. Comecei a viajar no pensamento exatamente como estou viajando nesse texto. Deitado, ligeiramente ansioso, como se estivesse em pé frente à longa esteira de malas e fora da minha zona de conforto, lembrei de “Salò ou os 120 dias de Sodoma”. Desejei que mais pessoas tivessem visto esse filme, uma representação bem crua da didática perversa da união promíscua entre poder econômico, igreja, Justiça e nobreza – talvez essa tenha sido justamente a razão da minha ansiedade. As coisas estão turvas e parece que não temos conseguido ir além do que se vê. E com isso vem a ansiedade, em pé, bem na frente da esteira girando. Acho que vocês devem estar sentindo isso também.

E a esteira segue girando.

Uma pausa…

Quem me tem como amigo por estas bandas sabe que eu curto colocar em formato de texto as coisas que eu vejo por aqui, nas ruas, no Catete. E tem gente que gosta de ler, o que me deixa muito feliz. Muito mesmo. Quem me conhece a fundo sabe que é o meu método prático de transformar a inquietude na preocupação com a forma, porque as coisas me deixam por vezes aliviado, por vezes muito angustiado. E eu quero dizer as coisas, não aguento.

Eu quero dizer, sem parecer pretensioso, que vou dar uma breve pausa para organizar essa minha prática em formato de livro. E esse negócio de livro precisa ter um tempo. E precisa também ter coisa de mistério, de textos não publicados. Vou organizar o pensamento, vou manter no secreto, para depois vomitar nesse novo formato. Que trabalhão!

Rapidinha 4

Eu havia tomado banho há pouco tempo, por isso decidi apenas lavar os respingos de água preta que estavam por secar entre os pelos das minhas pernas. A chuva começou quando eu ainda esperava a vez na fila do mercado; os clientes foram ficando ouriçados, pegos de surpresa, despreparados, escutei um ou outro lamento – a jovem do caixa perguntou afirmando: “Ih, tá chovendo?”. A criança, sem galochas, choramingou querendo biscoito – a mãe negou. É o incômodo da chuva. Eu tomei o caminho de volta para casa tensionando os dedos contra o chinelo, vã tentativa de conter o resvalo no calcanhar que eleva a sujeira do chão para as pernas. A chuva faz com que todos os desprotegidos abaixem levemente a cabeça e apontem os olhos para cima, sobrancelhas contraídas, óculos e cabelos inconvenientemente molhados. A distração com as poças. O mundo sob a perspectiva da inconveniência.

Cheguei em casa molhado, larguei as compras na cozinha e tratei de lavar embora os germes sempre prontos para comer a nossa carne por dentro das feridas. Pensei em tomar banho, mas decidi apenas lavar as pernas e pés. Foi quando eu lembrei de você. Faz tanto tempo. Você me chamava de nojento quando eu acordava apressado para ir ao trabalho e apenas molhava a cabeça na pia para assentar o penteado. Não daria tempo de tomar banho, você sabia. Nesses dias eu sempre voltava para casa com o cabelo mais oleoso, mais grudado à cabeça, feito vítima de sua praga matinal. A gente ria e eu ia direto para o banho. Eu ainda demoro no banho, as coisas não mudaram muito.

Eu sentei na cama para passar a toalha por entre os dedos dos pés, uma toalha muito felpuda e macia, um bocado cara – aprendi com a minha irmã que toalhas, assim como edredons, têm que ser da melhor qualidade. A chuva não havia diminuído milímetro sequer, e logo imaginei a rua do Catete submergir em sua própria complexidade, transeuntes agarrados às grades do Museu da República na Silveira Martins. Minha janela fechada tornava a perspectiva do mundo mais triste, mais centrado em mim, como a onda do vizinho que fuma todos os dias um baseado sagrado. A janela fechada também impossibilita o cigarro e costuma encurtar a distância do pensamento. Meu pensamento haveria de estar curto, bloqueado pela janela. Justamente por isso eu estranhei pensar em você, tão longe. É o incômodo da chuva.

Estranho lembrar de você logo num dia como esse. Antes, bastava um final de semana ensolarado para que fossemos à praia, você também detestava a chuva; eu achava meio estranho seu excessivo prazer num bronzeado. Eu sequer tirava a camisa, você lembra? Ainda não faço com tranquilidade. Os dias de sol forte não costumavam ser os meus preferidos e eu tampouco gostava de ir à praia, mas sua companhia bastava. Você amava a saturação das cores do céu, eu preferia os tons pastéis do fim de tarde. Hoje chove, e é desse cinza tão escuro que essas memórias vêm à tona. Talvez seja o meu cabelo molhado. A chuva ainda está caindo lá fora e eu, depois de tanto tempo, ainda penso em você.

Pela janela

Do alto da minha janela, no quinto andar, eu vejo meu vizinho preparar um cigarro de maconha com muita delicadeza. Ele mora no prédio ao lado alguns andares abaixo de onde moro. A falta de cortinas dá um tom pouco privado à vida dele — um micro big brother visto que a cama encosta na parede logo abaixo da janela, como se ajoelhado no colchão ele pudesse dobrar os braços e descansar a cabeça no batente olhando para o mundo lá fora. Ou olhando para mim aqui no alto. Todas as noites meu vizinho senta de pernas cruzadas na cama, abre o que imagino ser um estojo e distribui a erva sobre o papel com muito cuidado. Enrola, aperta, enrola novamente, passa a ponta da língua e lacra o baseado com um pouco de saliva. Acende. Eu, aqui do alto, viajo com ele.

Enquanto a maconha queima o peito do meu vizinho, lá embaixo, eu olho pela janela sem a pretensão de querer desvendá-lo; passo o olho, alterno entre o céu por vezes estrelado, a mata, os prédios; penso que a janela é o que há de mais sagrado numa casa porque é através dela que a gente pode ver o mundo sem sentirmos culpa pelo cansaço, sem o esgotamento de tudo é pesado na vida. Quando eu estou na janela, o único peso em mim recai sobre os olhos do meu vizinho — certamente mais fechados a cada trago. Ele não se preocupa em soprar a fumaça pela janela, em vez disso liberta os pulmões numa neblina que toma conta do conjugado. Meu vizinho deita e olha para o alto exatamente como os apaixonados procuram formas em nuvens que desmancham com o vento. Eu sigo viajando com ele.

Não gosto de maconha, acho que a erva fumada traz a concentração de fora para dentro, torna o centro do usuário maior que o resto das coisas e o pensamento vulnerável. Tampouco gosto do cheiro, enjoativo, por isso imagino uma atmosfera densa a do apartamento do meu vizinho, o que me faz lembrar um trecho do excelente “Cinema Orly” (1999), de Luís Capucho, escrito num talento que transcende a minha confusão de ideias. Ele diz:

“Quanto à onda que provoca o baseado, trata-se dessas experiências que se perdem no rol das coisas que são óbvias demais, simples demais, comuns demais e são inenarráveis exatamente como narrar o que sentiram Adão e Eva após comerem a maçã ou narrar uma galinha que atravessa a rua. O baseado ilumina minha imaginação. Toda imagem é surpreendente e se eu não morro de medo, fico inchado de prazer. Com o baseado percebo que mais imagino do que penso ou que o meu pensamento, o meu raciocínio, é iluminado por imagens o tempo todo. Se o meu cérebro funcionasse apenas sob o efeito de um baseado eu seria uma fogueira que arderia mais rapidamente. Não consigo entender como alguns amigos conseguem ser maconheiros. Na verdade, mesmo com aquele prazer de quando fumado, não gosto de maconha, não gosto de estar sensível, de estar percebendo. Prefiro a minha cabeça limpa, a minha cabeça sem me surpreender com o seu colorido. Também fico religioso quando fumo. Desvendo equações místicas. E sinto-me preso, como se eu tivesse uma alma realmente atada, impossibilitado de sua leveza por conta da imobilidade e peso do meu próprio corpo. E não gosto disso. Não gosto de pensar religiosamente, acho perda de tempo. Por isso fumo maconha já meio bêbado, quando o meu pensamento fica menos rígido e quebra-se com facilidade para não se prender a nenhuma ideia, nenhum pensamento mais longo ou inconsistente. Com a maconha os sentidos parecem mais longos, mais largos e o tempo mais intenso.”

Meu vizinho toda noite acende um cigarro delicadamente recheado de maconha. Eu, de um alto que não é tão alto assim, olho para ele preso em sua atmosfera densa, focado em seu próprio centro, sendo o protagonista involuntário do meu alcance. O travesseiro parece menos resistente ao peso da cabeça concentrada, livre de preocupações externas como a minha também parece estar quando eu recorro à janela. Nunca o escutei tossir, tampouco ligar música muito alta. Nossa relação, muda pela distância, desprovida de contato visual, não tem espaço para densidades maiores que a da maconha que ele tanto fuma. Um dia, porém, enquanto ele se divertia com a fumaça, me peguei pensando em como a triste trajetória da erva, no Brasil, entre plantio e pulmão, poderia ser transformada em um caminho mais eficiente em direção ao aval do Estado para uma liberdade tão banal. Banal como meu vizinho, no Catete, um rapaz que fuma às noites antes de dormir. Mas, estando na janela, não me aprofundei nos pensamentos tristes do Brasil, por que é da janela que eu viajo com o céu por vezes estrelado, com os prédios ou meu vizinho. Não posso ser denso na janela, não quero.

Ontem à noite, o rapaz sentou na cama de pernas cruzadas e pôs-se a despedaçar a maconha-concreto que desce os morros no Rio de Janeiro, seca em lajes – diz-se até que banhada em mijo. Levou o baseado à boca e fumou deitado. Eu fui viajando pela janela, concentrado em tudo que não sou eu, ao contrário de meu vizinho – sempre focado em seu centro. Fomos juntos nessa onda muito doida que é a dele, muito parecida com a minha, cujo combustível não é a maconha e nem poderia ser porque não me interessa entrar ainda mais dentro de mim; eu preciso sair, virar o avesso, viajar no outro, nele e em mais um monte de gente. A neblina no quarto, lá embaixo, ficava mais densa. Eu o observei até que meu estômago desse sinal de vida – coisa que certamente aconteceria com ele dali a algum tempo. Ao voltar à janela, depois de jantar, vi que o rapaz já estava dormindo, sua privacidade escancarada e o quarto completamente iluminado. Não sei se ele teve tempo de guardar a ponta do baseado. Meu vizinho, às noites, como eu, parece estar muito cansado. Para lidar com isso tudo, nós, eu e ele, seguimos viajando.

Direções

Dica número um dos guias de viagem, especialmente os que versam países do norte, é de que o viajante deve permitir perder-se pelas ruas das cidades, deixar se envolver pelos encantos de tudo que é novo e diferente, bonito. Mas, mesmo de férias, a preocupação com as direções – sempre elas, se faz presente a todo instante. Logo nas férias.

Eu estive recentemente em Praga, na República Checa, e uma das minhas boas impressões da capital se deu pela facilidade com a qual é possível se localizar nas ruas, tanto na cidade histórica quanto na Praga renovada, mais moderna. O meu cérebro matemático, tão burro, exige de mim um esforço monumental para interpretar as direções dos mapas em função dos pontos turísticos, restaurantes, do caminho de volta para a hospedagem. Em Praga, tendo o rio Elba como referência, meu cérebro ficou um pouco mais relaxado, frouxo, e eu pude me preocupar menos com os caminhos percorridos. Eu andava pelas ruas traçando as linhas retas criadas pela minha mente, sempre com as referências que funcionavam melhor para mim. Eu imaginava meus amigos talentosos com números, como o Daniel, tirando de letra os caminhos da cidade, já sacando de todos os desvios e atalhos. Eu, pouco habilidoso com as noções de espaço, em vez de virar na quinta ou na segunda rua – não sei, tornava tudo visual. Para retornar ao apartamento da Alena, onde me hospedei, eu atravessava a mais feia das pontes, certo de que ela me levaria à rua que escolhi ser a principal por nela estarem cravados os trilhos do tram (ou bonde, ou VLT). Depois disso, eu tinha que entrar à esquerda na esquina do sex shop “Erotic City”, enorme, e andar até a pichação “abortion sucks”, quando eu deveria virar à direita. Ali eu estaria “em casa”. Eu pensava que Daniel, por exemplo, chegaria muito mais rapidamente com apenas uma olhadela no Google Maps. Eu tinha a noção que percorria caminhos por demais geométricos, quadrados como os resquícios da arquitetura comunista, eram poucas linhas tortuosas, mais espertas.

Eu estou escrevendo isso porque estou meio cansado. Nós voltamos de férias e temos que retomar as direções, não as que tratam do plano espacial, mas sim as que conduzem a vida para o que ela é – ou para o que ela precisa ser. E me parece cada vez mais difícil mudá-las, transformá-las em outras direções. Às vezes eu gostaria de seguir por direções opostas às que eu estou acostumado a seguir. É muito difícil perdê-las, transformá-las. No trabalho, em casa, nas redes sociais, as direções precisam corresponder às expectativas de tanta coisa, de tanta gente. Não tem sido fácil para mim e acredito que também não esteja sendo fácil para você.

Eu queria escrever mais, mas não sei escrever o que eu sinto, só o que eu vejo. Então vou terminar:

Ontem eu parei para comprar goiabas. Elas não estavam nos meus planos, mas no caminho em direção ao Largo do Machado, um carrinho de madeira cheio delas me saltou os olhos. Amareladas ou mais verdinhas, molhadas, refletiam o sol quente de outono. A água que as hidratava espirrava de uma garrafa de dois litros de refrigerante com a tampa perfurada, um regador improvisado cuspindo no compasso do apertar das mãos do vendedor. Cinco por dez reais, informou o rapaz, um desses moleques de pouca idade, magro e sem camisa, o celular viscoso de suor preso à barra da cueca aparente – uma ressignificação de Calvin Klein com um bocado de valor. O umbigo vazava como se não comportasse o pouco recheio do corpo.

O vermelho das entranhas das goiabas-vitrine já havia me conquistado, nem pestanejei. Eu pedi auxílio para escolhê-las, comeria todas em dois dias, informei ao rapaz, dispensando as mais verdes. Ele, de prontidão, ostentando óculos de lente azul – desses modernos que refletem o que se vê -, catava as bichanas, as apertava com delicadeza, iam diretamente do carrinho para uma sacola de plástico translúcido, das que não têm alça e ficam dispostas em rolos para a pesagem de frutas e legumes nos supermercados. Me incomodou imaginar o caminho até em casa segurando uma sacola sem alças, punho cerrado para carregar minhas goiabas. Elas valeriam o sacrifício.

No tempo em que movimentei o braço para tirar a carteira do bolso traseiro da bermuda, o rapaz olhou para minha cara e disse: “Tá triste? Fica triste não, doutor, alegria é a melhor coisa que existe”. Eu não soube o que responder. Os óculos dele me refletiam, penso que triste. Primeiramente imaginei culpar minhas sobrancelhas, desenhadas em ligeira queda desde que nasci. Depois me entendi triste. Um ontem triste. Eu agradeci ao vendedor e rumei ao meu apartamento, certo para onde eu queria ir, mas sem direções. Punho cerrado para carregar minhas goiabas.

As roupas que usamos

“Era melhor quando a milícia tomava conta”, me disse agora uma pessoa com quem convivo praticamente desde quando nasci. Eu a adoro, e adoro ainda mais o tempo que passamos juntos, semanalmente, quando ela chega para cuidar das tarefas domésticas da minha casa. Sento no sofá enquanto ela passa as roupas que eu uso e conversamos sobre as coisas da vida. As roupas que eu uso.

Ela mora em um lugar carente até mesmo de asfalto, dominado pela violência encarnada em homens sem camisa, fuzis apontados para o alto, controle de entrada e saída, eles invadem seu quintal de supetão para filar o churrasco de fim de semana. Todo fim de semana tem churrasco regado a “cracudinha” de Antarctica. São cinco por R$ 10, ela me disse. “A milícia, ao contrário dos traficantes, não mexe com os moradores”. Não parece haver outra opção.

Hoje ela me contou um caso triste. Seu vizinho, um menino de 13 anos, usou a corda com a qual costumava brincar e se enforcou, quebrou o pescoço pendurado da laje. Era gay, “todo desmunhecado” segundo ela, mas um bom menino. Tinha até mesmo as unhas crescidas como deixam as artistas da TV. Ela me perguntou o que leva uma pessoa a se matar, respondi que deve ser a brutalidade do sofrimento, da agonia e da falta de amparo que impede enxergar luz no fim do túnel. Eu disse que ele deveria estar sofrendo muito.

O telefone dela tocou, segurou o aparelho entre o ouvido e o ombro, posição que me mata, e, passando as roupas que eu uso, danou-se a comentar com a irmã o suicídio do jovem. Ela dizia que não havia problema do menino ser gay, que achava ser menos pior do que quem rouba ou mata. Do outro lado da linha, a mulher fez o que entendi ser uma piada, as duas riram. Ao fim da ligação, ela me contou: “Minha irmã disse que ele foi sentar no colo errado… No colo da capiroto. Que coisa horrível!”.

Eu disse que não há problema em ser gay, e que, óbvio, muitas famílias não estão acostumadas com isso, mas que as pessoas nascem assim, exatamente como ela percebeu gostar de homens em algum momento da infância. Que ninguém pode mudar isso e que não é algo a ser mudado. As pessoas precisam entender. Ela concordou, disse que viu dois homens se beijando na Cinelândia e achou normal, que as crianças têm que ter boa educação para lidar com isso. Concordei dizendo que ninguém aprende a ser gay. “Não, Fred?”. Não. Ela falou que “na área dela” dizem que a Globo ensina, que é culpa da Globo. Mudamos de assunto. Voltamos a falar das “cracudinhas” que, no meu Carnaval, costumo pagar R$ 10 por três, vendidas justamente pelas famílias que vêm em bando com seus isopores lá da “área dela” (e dizem que brasileiro não gosta de trabalhar).

Nesta semana, um jovem de 13 anos pegou a corda com a qual costumava pular, passou pelo pescoço e se jogou de uma laje que eu imagino quente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Era gay, tinha unhas grandes como as das artistas da TV, traços femininos, possivelmente sofria bullying (algumas pessoas traduzem como “besteira”) e carregava o peso nas costas de temer ser um desgosto para uma família – imagino, não os conheço. Família essa que carece até mesmo de asfalto para se locomover. Quando chove é um problema. Família como a da minha amiga, que precisa fazer os filhos se alistarem no exército para “ter uma chance de sucesso”: “Eu não tenho como pagar uma faculdade, né, Fred”. Ela não vai votar em ninguém, disse que todos são corruptos. Ao fim das roupas passadas, as roupas que eu uso, ela me perguntou o que acontece com as pessoas que se matam, porque, segundo a irmã – leitora fiel da bíblia – não há salvação. Eu não soube responder, mas que uma coisa é certa: nós, os vivos, possivelmente não vamos para um bom lugar, com ou sem as roupas que usamos.

Aviso no elevador

Seu José Monteiro morreu na terça-feira. Nós compartilhávamos o mesmo andar no prédio, ele no 504, eu no 510. E apenas isso. Ele, já com limitações enormes de homem muito velho, equilibrava-se vagarosamente com o auxílio de duas bengalas; era dono de seu próprio tempo, escutava só o que a idade lhe permitia – quase nunca respondia meus cumprimentos. Nossa relação limitava-se à minha enorme paciência em esperá-lo alcançar o elevador para que pudesse entrar tranquilamente, sem a preocupação de segurar os dois apoios de madeira com apenas uma das mãos. Deus sabe, lá no topo do céu, quantas vezes eu pensei em desistir. Nunca o fiz.

Eu não saberia o nome do velho, José Monteiro, não fosse o aviso do velório preso à porta do elevador. Perguntei ao Isaías, o porteiro-chefe, cuja grafia correta também pode ser feita com z, se o anúncio tratava do velhinho do 504. No fundo, eu já sabia. Subi para meu apartamento pensando numa série de impossibilidades; que seu José Monteiro não terá chances de acompanhar o resultado das eleições em 2018 ou da Copa do Mundo. Tampouco verá os desdobramentos da intervenção do (P)MDB de Temer no (P)MDB fluminense de Pezão. Penso que de intervenção seu José já havia de estar cheio – o imagino ainda garoto, orelhas grudadas no rádio, ouvindo atentamente anúncios de intervenções ainda mais drásticas mundo afora, Brasil adentro. A morte interveio nesta terça-feira deixando seu José das duas uma: cheio de dúvidas ou coberto de infinitas certezas. Decerto, a mim, restaram as dúvidas.

Não sentirei saudades do velho Monteiro, mas acredito que ele permaneça nos sentimentos de alguns de seus familiares. Talvez ele ainda exista no olhar de um neto, numa boleira de porcelana pintada a mão ou numa cristaleira antiga, numa casa de veraneio no interior do estado. Pode ser que algum de seus netos nunca tenha tido a oportunidade de segurar a porta do elevador para o avô como eu tive, foram inúmeras vezes – a morte tende a ser ingrata. Ele, porém, pode nunca ter-se multiplicado em netos, filhos; os irmãos talvez o tivessem deixado sozinho, no Catete, como ele costumava estar, velho, devagar, com as limitações de homem fraco que eu temo um dia ter que enfrentar. Também temo ter que um dia sentir a dor profunda da morte, sensação que ainda, felizmente, eu desconheço. Não sei o que é enterrar, no sentido literal da palavra, um amor de perdição, alguém que eu amasse incondicionalmente. Um dia, e depois em outros, é provável que aconteça. Não quero. Imagino a tristeza de quem amava seu José Monteiro em um dia em que meu único desconforto havia sido, até ali, ter que descer para pegar o jornal.

Eu desci para pegar o jornal; sou o único do prédio que recebe diariamente o Estado de S. Paulo – Izaías, cuja grafia correta também pode ser feita com s, me contou. Neste breve espaço de tempo entre meu apartamento e a portaria – encurtado pelo fato de não ter que esperar seu José Monteiro – eu me vi obrigado a enfrentar meia dúzia de reflexões acerca da morte. Meu vizinho morreu, estava escrito na porta do elevador, e a minha vida seguiu no mais previsível dos cotidianos. Haveria como não ser estranho? Eu sempre digo e repito: é tudo muito doido.

O coração das velhas

As velhas se espremiam efervescentes por entre as gôndolas renovadas, carregavam cestas recheadas de produtos em promoção. A reinauguração de uma das principais farmácias no Catete, agora maior e mais moderna, repaginada, era o motivo de tanto alvoroço. Na porta, por onde cogitei sem sucesso não atravessar durante a grande semana de estreia, um sujeito com voz de cafajeste anunciava cosméticos e medicamentos mais baratos que o normal, ele usava o alto-falante para seduzir as velhas com preços cuidadosamente pronunciados número a número: “seis nove nove”; “cinco quatro oito”; “isso, minha senhora, eu falei Omeprazol a oito quatro nove”. A fila dos caixas não diminuiu durante aquela semana, enfileiravam-se todos os que buscavam preços mais em conta, curiosos, toda a gente do Catete, as velhas, eu.

Lá dentro, na farmácia lotada como bloco de carnaval, dava para sentir emanar das velhas de colo suado algo como um pouco de paixão, um pouco de tesão, um calor que alargava seus peitos, que as movia para lá e para cá, estavam incendiadas ali, naquele bordel de descontos e medicamentos, alcançavam o que podiam, conferiam a validade, peitos queimando como quando nós, os que ainda são ligeiramente jovens, saímos à noite sem saber se as possibilidades vão corresponder às expectativas. Algumas reclamavam da quantidade de gente, afinal, “esse povo não tem mesmo o que fazer numa hora dessas”. Circulando com cestinhas cheias, elas não mais precisavam registrar os produtos com uma atendente antes de seguir para o caixa – coisa que sempre me deixou irritado em algumas farmácias do Rio. O sistema da nova loja, renascida das cinzas de onde meu bar preferido, o Bar Getúlio, fechou as portas em 2010, estava mais simplificado: bastava escolher o produto da prateleira e ir direto para a fila. E a fila estava cheia delas, das velhas, chupando o que viam pela frente como abelhas fazem com o suco das flores. Eu que adoro as velhas, e sei que elas me adoram também, me enfiei no amontoado de gente apenas com a intenção de observar o formigueiro; comprei, porém, uns cinco ou seis sabonetes dos meus preferidos, os da marca Phebo que vêm em caixinhas cujos nomes são viajados e maravilhosos: “Figo da Turquia”, “Cedro do Marrocos”, “Alfazema Provençal”, “Tuberosa do Egito”, “Limão Siciliano”. Gosto de imaginar que as ervas e fragrâncias atravessam os oceanos para perfumar as barras que chegam até minha casa, imagino algo como eu imaginava as Companhias das Índias Orientais nas aulas de História, quando eu era ainda menos entendido das coisas.

No formigueiro de velhas apaixonadas, ouriçadas, enquanto a fila parecia não andar, dei por pensar no que mais teria o poder de deixar os peitos das velhas aquecidos, o coração mais acelerado, pulsante, com um amor disposto e quente, quase viscoso. Minhas considerações foram levando o pensamento cada vez mais longe, até chegar em algo que me desconcerta ainda mais a cabeça: a minha própria velhice. Às vezes eu me imagino velho, muito velho e limitado, empurrado numa cadeira de rodas num passeio pelo Aterro do Flamengo. A imagem de quem me empurra nunca é nítida, porém as minhas limitações de homem velho saltam o pensamento, passam pela garganta e espetam o coração. É muito desconfortável imaginar-se limitado, sem o peito atravessado de desejos, sem liberdade, sem poder correr o menor dos riscos. Na fila da farmácia, eterna e soberana, eu pensei como é bom encarar a possibilidade de certos perigos, e isso me levou a ouros dois pensamentos ainda mais detalhados.

Eu lembrei de como alguns riscos me fazem sentir desafiado, como por exemplo quando eu abro a porta principal do meu apartamento para levar o lixo à lixeira do corredor. Minha porta é dessas cuja maçaneta não gira por fora, ou seja, mesmo destrancada, se ela bater e eu estiver do lado de fora sem chaves, fico sem conseguir entrar em casa. Sempre quando vou à lixeira, com o saco plástico em mãos, escancaro a porta, deixo as chaves onde estão e saio acelerado para levar o lixo até a lixeira, na pressa para que a corrente de vento não bata a porta e não me deixe de short, descalço e sem camisa, trancado para o lado de fora. Eu sempre encaro o chaveiro, uma lembrança de uma amiga que visitou a Disney, confortavelmente encaixado do lado de dentro na fechadura, antes de decidir não arrancá-lo do lado de dentro do apartamento. Certa vez, a porta quase bateu. Riscos, riscos!

O segundo pensamento que veio à cabeça enquanto as velhas-formigas dilatavam varizes na festa da farmácia, foi a lembrança de que a consideração sobre possíveis riscos me levou a entender um pouco melhor o feminismo, há alguns anos. Eu nunca li nenhum livro ou autora renomada sobre o feminismo, déficit meu, o que sei sobre o tema encontrei nas redes sociais ou li artigos de mulheres que são intermediárias do feminismo, como colunistas e influenciadoras. Nunca, ou ainda nunca, fui em fontes mais concretas de especialistas. Na verdade, seria toda e qualquer mulher uma legítima especialista em feminismo? Por um lado, acredito que sim. Mas, certa vez, ao pensar sobre os riscos que corro, entendi concretamente algumas limitações das mulheres. Eu estava conversando com uma amiga sobre as coisas que sentimos, coisas cotidianas, e eu queria que ela entendesse como, para mim, é importante voltar tranquilamente da Lapa, a pé, nas altas horas, quando a cor do céu permite enegrecer o coração nos impulsos, em pensamentos ébrios, toscos, ridículos. Ela, por considerações de segurança muito mais graves que as minhas, não se sentiria confortável nem de pensar em voltar sozinha, a pé, da Lapa. Tampouco conseguiria entender o que é sentar no gramado do Aterro, à noite, mesmo quando os guardas ainda se fazem presentes, e olhar para Niterói no horizonte com tranquilidade. Eu queria falar sobre essas coisas com uma amiga, ela é uma das que gostam de falar sobre as sensações, mas não entenderia porque os riscos, para ela, ultrapassam todos os limites do aceitável apenas por ela ser mulher. Tudo muito difícil. Foi aí que essa dificuldade em conseguir comunicar sensações me despertou para a questão feminina e para um aprendizado que deve ser cotidiano.

Eu, na farmácia, com o pensamento longe, voltei a atenção às minhas velhas. Já estava no caixa pagando pelos meus sabonetes. Sei que não me sentiria limpo como sinto quando compro os sabonetes antibacterianos, que parecem eliminar toda e qualquer impureza do corpo, mas me sentiria mais perfumado e viajado, mesmo que no plano das ideias. Minhas velhas do Catete estavam em polvorosa, os corações seguiam em chamas. O meu também estava aceso, em sintonia com todas elas. Angústia apenas na incerteza da velhice, do que vai ser capaz de incendiar minha mente e coração quando eu estiver velho e limitado. Não sei se os jovens vão me adorar, tampouco sei se eu vou adorar os jovens como as velhas do Catete me adoram. Em casa, depois da academia, tomei banho pensando se as coisas que ouriçam as velhas do Catete são as mesmas que efervescem as que eu imagino colher figos na Turquia ou Alfazema em campos franceses. Não sei, não entendo muito bem a velhice e acredito que vá demorar mais um bocado para eu entendê-la. Talvez eu, vai saber, eu nunca chegue a entender. São os riscos!