É tão estranho

Vim chutando a fruta que parece manga espada desde o início da rua do Catete; não foi tarefa fácil, ela rodopiava num desengonço sem rumo: cada chute como tiro no escuro. Entre os para lás e para cás eu, somente eu, e o percurso. Diferente da fruta, desnuda pelo ralar do chão, eu seguia caminho com partida e chegada, todo definido, reto, exato, esforçando-me para fazê-la rolar dentro dos limites do meu destino: beirava o meio-fio e lá estava eu, pronto para resgatá-la de sua liberdade de fruta caída.

Os percursos solitários, vejam bem, são os termômetros do dia a dia – não falo sobre o caminhar sem rumo, puro devaneio. Trato da linha entre os dois pontos, partida e chegada, estão se ligando? Basta lembrar do caminho até em casa na tarde daquele primeiro beijo, do caminhar cambaleante ao anoitecer depois de um bloco de Carnaval com os amigos, do trepidar do ônibus ao fim de uma discussão no trabalho. São eles, os percursos, inquestionáveis indicadores invisíveis das coisas que gritam em silêncio. Por vezes gritam dentro do peito, alargam ou espremem, por outras gritam bem dentro da cabeça. Às vezes silenciam. Rumar sozinho esclarece ou confunde ainda mais. Revela, porém.

Eu chutava a fruta-manga espada desde o início da rua do Catete, vinha de algumas cervejas na Praça São Salvador e havia encontrado Carolina. Ela estava rodeada de amigos, riso solto como de costume, o corte de cabelo novo lhe caiu muito bem. Fazia tempo que não nos víamos, cinco meses para ser mais exato – desde que oficializamos o fim de nós dois. Numa encarada de três ou cinco ou dez segundos, sorrimos um para o outro sem mostrar os dentes – foi estranho não mais ter a chave de seus segredos. Antes, bastava um piscar de olhos para eu saber o que passava naquela cabeça, o que ela sentia ou queria dizer, eu me adiantava com respostas, motivo para brigas ou gargalhadas. Nada mais. Teria ficado contente em me ver?

Exagerei na força do chute, a fruta levou bico de raspão e bateu no pneu murcho de uma bike Rio, busquei-a perdendo um pouco a paciência e continuei o caminho até minha casa. Carolina e eu por muitas vezes fizemos companhia um ao outro neste percurso, foram mais de cinco anos de namoro, dois deles sob o mesmo teto. Ao terminar comigo, disse que há meses já não estávamos juntos, coisa de sintonia. Eu concordei, entramos no papo da distância e do trágico fim comum dos relacionamentos, ela disse ter conhecido um cara no curso de hebraico que teimava em não sair de sua cabeça. Eu disse que tudo bem, que a vida é livre – como costumo dizer -, com a garganta cheia de nós para engolir. Ela achou insensível: ‘viu como você não se importa mais?’. É, não me importo, blindei-me num casulo. Desde aquele dia, foram apenas duas ou três ligações telefônicas, algumas mensagens no WhatsApp e a exclusão mútua nas redes sociais para ‘ajudar a cicatrizar’ – poderíamos um dia ser amigos.

Eu bebia cervejas com os meus. Carolina bebia com os seus, antes estaríamos todos juntos, cada um na sua devida distância. Seria maduro cumprimentá-la? Não estava com vontade e, naquele momento, não acho que deveria ter. Ela e eu fomos muito felizes juntos, mas hoje éramos apenas conhecidos. É tão estranho. Despedi dos meus amigos – acordaria cedo no dia seguinte – e, sem Carolina à vista, segui meu percurso. Fui chutando uma fruta verde até o portão de casa, Carolina a cada bico, Carolina a cada rodopio, Carolina a cada vez que a fruta ralada insistia em tentar passar pelas grades dos bueiros da rua do Catete: minha cabeça dava sinais de cansaço – Carolina.

Abri o portão, virei-me para a rua e chutei longe a fruta-manga espada, rolando até perder de vista.

Música floral

Pego a camisa
Que você me deu
Vestiu legal
Mas a estampa leva a crer
O que eu não sou
Tá legal
Independentemente da camisa
Saio sabendo quem sou
Mas quem olha não diz
Tá tudo normal
Exceto dentro de mim
Vou vestindo a camisa
Que você me deu
Camisa bonita
Estampa floral
Vejo nos olhos de quem diz
Tá legal
Mas não sabe quem sou
Me pergunto
Se sabem quem são
Eu sei bem quem sou
Eu sei bem quem sou

A tensão que ninguém vê

Alexandre Rufião fitava Wilsin com apetite nos olhos – fome de uma vida toda. Com o pretexto de levar Pretão para passear, encoleirava o labrador e descia os três lances de escada do prédio em direção ao boteco na esquina da Andrade. Mantinha cantinho cativo, apoiava as costas contra a parede e descansava o chope na única mesa alta do lado de fora do bar, daquelas que pedem cadeiras igualmente altas e desconfortáveis. Rufião nunca sentava. Chope atrás de chope, o cão deitado não parecia se incomodar.

Às 20h, Wilsin largava o serviço no boteco e sentava à mesa logo à frente esperando carona do irmão que sempre tardava em chegar. Tomava umas geladas, tudo por conta do patrão, seu Zé, gente boníssima. Wilsin, Wilson de Sousa Neto, chegou da Paraíba depois de três anos no serviço militar. Aqui conseguiu emprego e namoradinha, Danielle, grávida de cinco meses. O moleque, tão moleque, já estava pronto para ser pai. Rufião, discreto, encarava o jovem descolado, de risada frouxa, chinelo nos pés e boné vazando da cabeça. Não continha o gelo na barriga e os latejos por dentro da bermuda larga quando trocavam olhares – apertava a coleira como num alívio. Bastava avistar o garçom fora do batente pra se sentir moleque novamente, logo ele, Alexandre Rufião, casado há 26 anos e pais de duas meninas. A mais nova, aos 22, batia fácil idade com Wilsin.

O jovem não era bobo, estava ligado nos cortejos invisíveis do coroa. Retribuia sorriso manso, escapava o rabo de olho na direção de Rufião. Ninguém percebia nada. Largava o chinelo e subia um dos pés à beirinha da cadeira baixa, abraçava a perna com o braço magro e mexia nos dedos como para tirar ponta de unha – momento ideal para mandar olhar cabisbaixo e tentação de canto de boca. Por vezes levantava e avançava em direção a Rufião, passava as mãos na pelúcia de Pretão numa proximidade que o homem desconcertava, a testa molhava de suor.

– Ele é manso pra caramba né? – É, já tá velho. Tá velho, né, Pretão?

Rufião virava o copo pedindo por mais chope gelado.

Dia após dia, por mais de um ano, lá estava Rufião na esquina da Andrade, em pé, na companhia de Pretão; a barriga inchada de chope. Wilsin se fazia de bobo, curtia um papo com os outros garçons que ainda estavam de serviço, levantava, espreguiçava – Rufião enlouquecia – mandava zap para Danielle, chamava os companheiros pra ver a tela do celular, caia na risada. Vez em quando ligava a atenção no coroa, desviava, achava graça, chegou um dia a morder os lábios, Rufião corou sem conseguir manter olhar fixo. Dava em nada, até uma quinta-feira não tão qualquer, quando o coroa chegou ao boteco pontualmente às 20h na ânsia de ver Wilsin. Foi pego de surpresa, ouviu que o jovem pediu as contas e voltou para a Paraíba, ganhou puxadinho para morar com Danielle. Foi como um soco forte. Encerrou o chope, levantou a voz e gritou por uma branquinha.

– O que é isso, seu Rufião? O senhor bebendo cachaça? – respondeu seu Zé, pronto para caprichar na dose.

Rufião e Pretão não voltaram para casa naquela noite.

Dez minutos de atenção

Lá pelas tantas, matando as saudades, depois da gelada com os homens que vez em quando se arriscam numa fezinha, encontrei um dos maiores vilões do Catete. Nos abraçamos, mais até do que eu gostaria, ele questionou meu paradeiro e disse que nunca mais havia me visto por aquelas bandas. Eu me adiantei dizendo que estava de folga, passei um tempo fora para sentir falta daquilo tudo, mas estava de volta; não largo o osso, tá ligado? Elogiou minha camiseta, perguntou se eu não arranjava uma para ele matar no peito, fim de ano, sabe como é, fica tudo mais difícil com pouco bico. Me pediu um cigarro, disse que gosta de mim porque não olho ninguém de cima para baixo. Dei dois.

Enquanto ele baforava a fumaça – já com um dos cigarros acomodado na orelha, outro dos vilões passou por nós dando uma encarada. Trocaram olhares – não devem se bicar. O cara é daqueles que prestam serviço da alçada do Estado, já que a onda aqui é privatização a la brasileira. Ele cuida da área, afasta as ratazanas, tem meu respeito, homem sério cuja cara já faz borrar as calças de quem pensa em cometer pequeno delito. Diz que anda armado. Seguiu seu caminho no balançar da corrente dourada enrolada no punho.

Eu e meu parceiro continuamos matando as saudades, perguntou se eu estava precisando de algum serviço, coisa de pintura, pequeno reparo. Percebi que estava mais magro; respondi que não, mas caso soubesse de algo avisaria. O papo fluiu como sempre fluiu, eu, desinteressado, ele falando sem parar, conexão olho a olho, sem desvio. Eu me afastava um pouco numa tentativa de desviar os pingos de saliva que voavam em minha direção, um acertou o canto do meu lábio em cheio, que merda! Tava na hora de seguir para casa. Disse que precisava ir embora, já estava tarde e o dia seguinte começava cedo. Apertamos as mãos, mais um abraço demorado, ele precisava de um banho, de roupas limpas. Se despediu feliz por saber que vamos voltar a nos esbarrar mais vezes, vai filar cigarro, quem sabe um pouquinho da cerveja, dez minutos de atenção, como sempre. Sem saber exatamente o porquê, eu também estava feliz por ter certeza que vamos sempre nos ver por aí.

Pintos na sacola

Rec rec rec. O velho girava os pinos de plástico com os dedos enrugados, e os pintinhos efervesciam no chão. De pulinho em pulinho os brinquedos de corda, tão vagabundos, disparavam aleatórios até que cessassem o movimento, dispersos. Raramente paravam em pé; não poderiam ser fabricados em lugar do mundo que não a China. Taiwan, talvez. O trabalho era ingrato tanto para os chineses – eu pensava – quanto para o velho vendedor na porta da galeria Condor, no Largo do Machado. Já em idade avançada, era daqueles velhos que a gente olha e lamenta a labuta. E que labuta! O homem, curvado, abaixava de minuto em minuto para dar corda novamente nos plumadinhos amarelos, tão desajeitados, feiosos. Alguém compraria pintinhos de dar corda? Rec rec rec, o velho dava corda abaixado, apoiava as mãos no joelho e voltava a oferecer a quem passava, como num martírio de pagador de promessas. No braço uma sacola – decerto um galinheiro inteiro. No outro, cartela de remédios e receita do SUS. Através das lentes profundas dos óculos o homem parecia ter a idade muito mais avançada do que aparentava distante. A pele murcha muito branca trazia à tona o verde das veias no rosto, e os pontos brancos de barba mal feita, branco-neve, eram mais espessos que os poucos fios restantes na lateral da cabeça. Poucos dentes também sobravam na boca do velho. As pessoas passavam para lá e para cá como se o velho fosse tão invisível quanto os pintinhos são para o mundo.

A mulher de cabelos loiros passou apressada.
O mendigo mordeu um pedaço de pão.
O jovem espirrou.
O homem falava ao celular.
A criança precisou de colo.
A velha comia kibe.
O trocador de ônibus correu.
Os adolescentes não pegaram o panfleto.
Amarrado ao poste, o cão implorava pela dona na porta da farmácia.

Rec rec rec, os pintinhos pulavam até cair.

Dona Elizete

Dona Elizete morava no 801, porta a porta com o meu saudoso 803, na Ferreira Viana. Era velha saidinha, vivia só no quitinete bem pequeno e muito caprichoso. Já devia estar na casa dos 80, mas as passadas curtas e ligeiras davam um sopro de jovialidade aos cabelos coloridos de castanho envelhecido. Sempre nos encontrávamos no elevador, eu puxava cortês a porta para dona Elizete, ela agradecia. Certo domingo, me perguntou aonde eu ia tão cedo, disse que jovem acorda tarde no domingo.— Ao jardim do Palácio do Catete — respondi. A velha soltou gargalhada de olhos arregalados e falou que aquilo lá era coisa de velho, tinha horror. — Então eu já sou velho — retruquei sorrindo.

Aos sábados ensolarados, magrinha, descia a rua toda serelepe puxando seu carrinho rumo à feira do Largo do Machado. Caso chovesse, deixava a feira para dia de terça na rua Governador Irineu Bornhausen. Não importava o dia, o carrinho ia vazio e voltava abarrotado de frutas, verduras, pedaços grandes de queijo minas e peixe fresco. Que apetite, o da velha! Semana sim semana não, no braço que não arrastava as compras, dona Elizete equilibrava uma dúzia de ovos — ovo caipira, sem hormônio, a gema da cor de uma laranja —. Pendurados no antebraço, mais sacolas-contingente: deixavam marca plástica no antebraço da velha. Recebia quase nada de visita, eu pensava. Como comia, dona Elizete! Voltava da feira como rainha do pedaço, quando em quando a rodinha plástica agarrava na calçada, nada demais, era esperta. Conhecia o Catete como ninguém. Cumprimentava todos os dias o dono de uma das bancas de jornal, um homem muito gordo com manchas escuras no rosto redondo — Para de fumar, menino! — fazia cara feia. Recebia de volta votos de dia bom. Os pedintes bem que tentavam se aproveitar de Dona Elizete, esperavam complacência de idade avançada, besteira. Não havia gaitado que mexesse com a velha sem ouvir resposta torta — Xô porcalhão, vá arrumar serviço! — Virava na Ferreira Viana e entrava no prédio. Ai do porteiro que deixasse dona Elizete esperando no portão. Reclamava com a síndica, escrevia carta no livro de reclamações, mas sempre deixava um agrado, um chocolatinho ou sanduíche para os ‘meninos’. Benedito, o porteiro mais novo, esperava a velha arrastar as compras pela rampa de serviço, segurava o elevador e apertava o número oito para dona Elizete entrar. Sempre reclamava do calor, mas que chuva não viesse, ela não suportava ir à feira às terças.

Percursos

Eu tenho a ligeira impressão de que as relações mais amorosas estão nos percursos. Porque no fim das contas a festa é a festa, o bar é o bar, o cinema é o cinema e o motel é o motel. Todos muito delimitados por um triângulo de normas, tradições e expectativas. Nos percursos, só a imprevisibilidade do estado natural das coisas. Ama-se muito mais no caminho de volta pra casa, até quando a casa é a mesma, do que num cinema a dois. Ama-se muito mais até o ponto do ônibus ou no trajeto até a praia. Na academia pode ser paixão, tesão, mas naquele caminho de volta para casa é onde aparece o amor – ‘A gente se vê’.

O importante, para mim, é chegar junto. É o percurso. Quando estamos lá, a gente pode até se perder no meio dos amigos, dos desconhecidos, das previsibilidades. Mas o voltar, o ir… O percorrer, junto(s), faz toda a diferença. A quantas anda o ‘cá para lá’ ou ‘lá pra cá’ com sua companheira – ou seu companheiro – é o que importa. O amor fica visível nos trajetos percorridos, dos mais triviais aos mais sofisticados. Há uns casais que, em crise, pensam em melhorar as coisas indo justamente onde as coisas são exatamente o que são (e nada além disso, se é que me entendem). A festa vai ser sempre a festa; o bar, o bar. A mesma coisa com o cinema ou o motel. Mas no caminho até a padaria, o supermercado… Na madrugada, voltando para casa… Muito louco.