Eu havia tomado banho há pouco tempo, por isso decidi apenas lavar os respingos de água preta que estavam por secar entre os pelos das minhas pernas. A chuva começou quando eu ainda esperava a vez na fila do mercado; os clientes foram ficando ouriçados, pegos de surpresa, despreparados, escutei um ou outro lamento – a jovem do caixa perguntou afirmando: “Ih, tá chovendo?”. A criança, sem galochas, choramingou querendo biscoito – a mãe negou. É o incômodo da chuva. Eu tomei o caminho de volta para casa tensionando os dedos contra o chinelo, vã tentativa de conter o resvalo no calcanhar que eleva a sujeira do chão para as pernas. A chuva faz com que todos os desprotegidos abaixem levemente a cabeça e apontem os olhos para cima, sobrancelhas contraídas, óculos e cabelos inconvenientemente molhados. A distração com as poças. O mundo sob a perspectiva da inconveniência.
Cheguei em casa molhado, larguei as compras na cozinha e tratei de lavar embora os germes sempre prontos para comer a nossa carne por dentro das feridas. Pensei em tomar banho, mas decidi apenas lavar as pernas e pés. Foi quando eu lembrei de você. Faz tanto tempo. Você me chamava de nojento quando eu acordava apressado para ir ao trabalho e apenas molhava a cabeça na pia para assentar o penteado. Não daria tempo de tomar banho, você sabia. Nesses dias eu sempre voltava para casa com o cabelo mais oleoso, mais grudado à cabeça, feito vítima de sua praga matinal. A gente ria e eu ia direto para o banho. Eu ainda demoro no banho, as coisas não mudaram muito.
Eu sentei na cama para passar a toalha por entre os dedos dos pés, uma toalha muito felpuda e macia, um bocado cara – aprendi com a minha irmã que toalhas, assim como edredons, têm que ser da melhor qualidade. A chuva não havia diminuído milímetro sequer, e logo imaginei a rua do Catete submergir em sua própria complexidade, transeuntes agarrados às grades do Museu da República na Silveira Martins. Minha janela fechada tornava a perspectiva do mundo mais triste, mais centrado em mim, como a onda do vizinho que fuma todos os dias um baseado sagrado. A janela fechada também impossibilita o cigarro e costuma encurtar a distância do pensamento. Meu pensamento haveria de estar curto, bloqueado pela janela. Justamente por isso eu estranhei pensar em você, tão longe. É o incômodo da chuva.
Estranho lembrar de você logo num dia como esse. Antes, bastava um final de semana ensolarado para que fossemos à praia, você também detestava a chuva; eu achava meio estranho seu excessivo prazer num bronzeado. Eu sequer tirava a camisa, você lembra? Ainda não faço com tranquilidade. Os dias de sol forte não costumavam ser os meus preferidos e eu tampouco gostava de ir à praia, mas sua companhia bastava. Você amava a saturação das cores do céu, eu preferia os tons pastéis do fim de tarde. Hoje chove, e é desse cinza tão escuro que essas memórias vêm à tona. Talvez seja o meu cabelo molhado. A chuva ainda está caindo lá fora e eu, depois de tanto tempo, ainda penso em você.