O moleque desgarrou das pernas da mãe e veio cambaleando em minha direção, passos curtos e atrapalhados, apoiou as mãos pouco acima dos meus joelhos e lançou um sorriso banguela olhando para cima. Eu devolvi o sorriso num desengonço, cogitei lhe alisar a cabeça ou segurar um de seus braços gordos, mas o que pensaria a mãe diante da ética pandêmica do toque? A mulher acelerou o passo e buscou o filho, murmurou inaudível, constrangida.
O contato mais íntimo que tive com alguém, nos últimos dias, foi o encontro com um moleque desconhecido. Ele correu em minha direção e retomou o equilíbrio apoiado nas minhas pernas enquanto eu aguardava a vez na fila do supermercado. A mãe gritou seu nome, Davi, e buscou-lhe rapidamente. Eu sorri, ela puxou a criança pelo braço e tornou a atenção às pedras sanitárias numa das prateleiras da loja.
São 7h32 da manhã e o ponto alto da minha semana é a ida ao supermercado. Não há desespero, mas estou um pouco ansioso, um tanto frustrado. A privação das liberdades mais ordinárias pesa o pensamento, o corpo fadiga mais rapidamente numa simulação do exercício – ou como numa reação constante à falta dele. Eu estou concentrado, porém. Sinto a preocupação tomar espaço da libido. E é a libido que move o mundo, o meu mundo, o que eu leio ou ouço ou faço. O mundo está mais brocha, o mundo está parado – é grave.
Ando de volta para casa, desvio das velhas do Catete como faria diante do diabo. Sinto-me herói das velhas – um delírio – preocupo-me com sua saúde. A preocupação também circunda os anos fumados, a asma, minha mãe, a economia, a ignorância do presidente, o morador de rua, o cão que se alimenta dos restos do restaurante fechado, as garotas na esquina da Gomes Freire com a rua do Rezende. Penso o que Leandro, meu irmão morto, diria sobre isso tudo. Penso nesse texto, cada vez mais confuso, saindo dos trilhos.
Eu estou voltando para casa, ainda não são 8 horas da manhã, carrego comigo uma sacola com dois pães – desculpa para romper o confinamento. Estamos diante da impossibilidade, parados; a cabeça maquina coisas temerosas, todas entre vírgulas excessivas. Já no meu prédio, a vizinha à porta do elevador conta à amiga ter entrado na onda do skin care. Diz que durante a quarentena a pele tende a ficar mais bonita, mais fácil de tratar. Eu passo por elas e subo as escadas.
Ligo o chuveiro e penso se devo usar desodorante após o banho – faria sentido, morando sozinho, durante a quarentena? Demoro três músicas debaixo d’água: “Stupid Love”, da Lady Gaga; “How Soon is Now”, dos Smiths; e “It’s a Raid”, do Ozzy. É um banho demorado. Um banho quarentena. Pouquíssima libido, porém; muitas preocupações. A incerteza tira a gente do lugar.
É sábado e me incomodo cada vez mais com a fatalidade do vírus, assassino de alguns dos nossos pequenos prazeres. Leio um artigo na internet – ele diz que tudo vai passar, que venceremos, que sairemos mais unidos. Não acredito. Seremos vencidos e eu tenho certeza. Se não pelo vírus, seremos derrotados pela guerra, pelo consumo a qualquer custo, pela constante insatisfação sexual que rompe limites, pela impaciência ou desespero. Seremos vencidos por “poetas babosos”, pelo “câncer que-ninguém-descobre-a-causa”, por “legumes envenenados” ou pelo “sindicato policial do crime”. As aspas são de Roberto Piva, brilhante. Seremos vencidos, eu sei. Você sabe também. A vida não passa de uma experiência – e é justamente isso que a torna maravilhosa.
Um menino se equilibra enroscado nas minhas pernas. Não o conheço e tampouco ele conhece a mim. Correu em minha direção como se eu fosse um objeto de desejo, o pai, um picolé, um desenho animado. Acho graça, o moleque é fofo e eu sei ser fofo também. A mãe o afasta de mim. “Próximo”, grita a caixa do supermercado sob a máscara hospitalar. Pago pouco mais de dois reais por dois pães e tomo o caminho de volta para casa, para o confinamento, para a quarentena, para esse estado das coisas inédito que, infelizmente, vamos em breve naturalizar. Imagino as festividades anuais pré-quarentena, as pessoas estocando alimentos, transando com desconhecidos, “promoção de quarentena”, imprensa, 5 dicas para enfrentar a quarentena, lives, lives, lives. A vida é só uma experiência.
“É o jornalista que eu sigo no instagram”, pensei quando te vi – também no aterro- sábado pela manhã.
As pessoas estão passando. O tempo também. Tudo passa, disse Chico Xavier. A nós, cabe fazer algo com o que tá passando. Ressignificar. É muito particular e subjetivo. Devaneios tantos quando ando e corro por aí, tentando enquadrar minha loucura um pouco. Se tem uma coisa boa dessa quarentena, é a reconexão. Com o outro e, sendo assim, comigo. Para tantos desencontros e dissabores, leitura. Chuva. Sol fraquinho. Verde. Café fresco. Cachorros. Amores. Fé. Vai passar…
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Diogo Simonaci
Seremos vencidos pelo moleque desconhecido, tentando nos manter em equilíbrio na corda bamba da vida. É domingo e carrego comigo uma sacola de preocupação – desculpa para comentar esse texto. Seremos vencidos, você sabe. Eu também sei. Não te conheço e tampouco você conhece a mim. A incerteza tira a gente do lugar. Corro em sua direção como se você fosse um amigo. As experiências não passam de uma vida – e é exatamente isso que as tornam maravilhosas.