A preparação para a festa

Mãe e filha andam em minha direção, as duas parecem muito felizes. A menina não passa dos sete anos de idade, está vestida com uniforme escolar e saltita ao lado da mulher que segura com as duas mãos uma caixa quadrada — em suas entranhas imagino haver um bolo. As duas conversam animadas, cara e bocas; é o clima de preparação para a festa. Imagino-as indo para casa apressadas, ainda haverão de se enfeitar para receber os convidados. É preciso terminar de arrumar a mesa, espalhar as balas de coco embaladas em franjas de papel em volta dos pratos de doce. Imagino o cheiro das bexigas, das salsichas borbulhando no molho quente na panela, das mãos amanteigadas de enrolar brigadeiro. Eu passo por elas, seguimos por direções opostas da rua das Laranjeiras. Sigo um caminho soturno comparado ao caminho oposto, o caminho de mãe e filha. Não há festa — tampouco bolo, doce ou confraternização. Penso que gostaria de estar preocupado, ao menos hoje, com a trivialidade de quem esquece os copos descartáveis no balcão da loja de embalagens. Ou de quem busca sem sucesso uma vela de número 3 para cravar no topo do bolo. Mãe e filha já estão distantes de mim, cada vez mais próximas da festa, de receber a encomenda dos salgadinhos. Olho para trás e checo se elas ainda sobrevivem no meu campo de visão. Estão cada vez mais longe.

Hoje é sexta-feira, estou indo para casa. Minha cabeça está cansada, sinto também o corpo cansado, mas o espírito se mantém cheio de vida e expectativa. Há pouco pensava na programação do meu final de semana, agora nada tira da minha cabeça uma tão distante festa na casa da Rosa, uma vizinha de infância. Quando tinha muito pouca idade, fui com minha mãe para uma festa de aniversário na casa da Rosa, pessoa de quem hoje sequer consigo imaginar a fisionomia. Lembro do bolo retangular em cima da mesa, era um bolo de nozes; lembro de sentir muita vontade de fazer cocô e também da timidez em avisar minha mãe que eu precisava que ela interrompesse a conversa para que eu pudesse ir ao nosso banheiro — ao banheiro da nossa casa. Não lembro o desfecho da história, mas lembro de estar muito apertado andando em círculos em volta da mesa que sustentava o bolo na sala. Lembro do cheiro do bolo, um bolo que certamente é muito diferente do bolo carregado pela mãe na rua das Laranjeiras. Os bolos de antigamente ocupam um lugar especial na memória coletiva. Os de hoje são um bocado estranhos. Muitas vezes ocupa o centro da mesa uma versão feita de isopor, para que depois de cantado o parabéns seja servido o bolo verdadeiro, já fatiado. Tudo muito prático, muito plástico, muito lindo.

Mãe e filha a essa altura já devem ter chegado em casa, eu também estou perto da minha. Lembro agora do bolo que Letícia fazia para mim quando ainda morávamos juntos – lembrar de Letícia talvez não seja próprio. Lembro, então, do bolo. Um bolo simples, bolo de bolo, mas com uma calda de amendoim obscena, deliciosa. Letícia. Lembro de Letícia e o dinamismo da memória me faz recordar que ela tinha a mania de apertar os calos das minhas mãos quando assistíamos à televisão juntos no sofá. Ela fazia seus dedos de pinça e beliscava cada calo, um a um, como um gesto de carinho. Cada apertão parecia confirmar o quanto ela se importava comigo, que gostava genuinamente de mim. Nunca chegamos a falar sobre isso. Nunca falamos sobre um bocado de coisas, penso agora. Nunca falamos sobre o bolo. Preciso me concentrar no bolo. O bolo de Letícia imagino ser mais simples que o bolo da festa da menina de Laranjeiras, mas não menos delicioso. Letícia. Eu agora estou muito perto de casa, queria estar animado com os preparativos da festa, desatando o nó dos sacos plásticos que embalam os petiscos comprados a granel. Hoje não tem festa, ao menos aqui em casa.

Estou em casa, é sexta-feira, não há festa aqui; tampouco fui convidado para a festa da mãe e filha de Laranjeiras. Sento no sofá, ele está vazio – não sinto cheiro de bolo vindo da cozinha. Pouco sinto, para falar a verdade. Queria mesmo é estar tomando banho enquanto o queijo das mini pizzas derrete no forno. Penso que estaria feliz se, em vez de boletos a pagar, houvesse um bolo no centro da mesa da sala. Bolo de bolo. Letícia. Minha cabeça está cansada. Hoje, estranhamente, doem os calos das minhas mãos.

As roupas que usamos

“Era melhor quando a milícia tomava conta”, me disse agora uma pessoa com quem convivo praticamente desde quando nasci. Eu a adoro, e adoro ainda mais o tempo que passamos juntos, semanalmente, quando ela chega para cuidar das tarefas domésticas da minha casa. Sento no sofá enquanto ela passa as roupas que eu uso e conversamos sobre as coisas da vida. As roupas que eu uso.

Ela mora em um lugar carente até mesmo de asfalto, dominado pela violência encarnada em homens sem camisa, fuzis apontados para o alto, controle de entrada e saída, eles invadem seu quintal de supetão para filar o churrasco de fim de semana. Todo fim de semana tem churrasco regado a “cracudinha” de Antarctica. São cinco por R$ 10, ela me disse. “A milícia, ao contrário dos traficantes, não mexe com os moradores”. Não parece haver outra opção.

Hoje ela me contou um caso triste. Seu vizinho, um menino de 13 anos, usou a corda com a qual costumava brincar e se enforcou, quebrou o pescoço pendurado da laje. Era gay, “todo desmunhecado” segundo ela, mas um bom menino. Tinha até mesmo as unhas crescidas como deixam as artistas da TV. Ela me perguntou o que leva uma pessoa a se matar, respondi que deve ser a brutalidade do sofrimento, da agonia e da falta de amparo que impede enxergar luz no fim do túnel. Eu disse que ele deveria estar sofrendo muito.

O telefone dela tocou, segurou o aparelho entre o ouvido e o ombro, posição que me mata, e, passando as roupas que eu uso, danou-se a comentar com a irmã o suicídio do jovem. Ela dizia que não havia problema do menino ser gay, que achava ser menos pior do que quem rouba ou mata. Do outro lado da linha, a mulher fez o que entendi ser uma piada, as duas riram. Ao fim da ligação, ela me contou: “Minha irmã disse que ele foi sentar no colo errado… No colo da capiroto. Que coisa horrível!”.

Eu disse que não há problema em ser gay, e que, óbvio, muitas famílias não estão acostumadas com isso, mas que as pessoas nascem assim, exatamente como ela percebeu gostar de homens em algum momento da infância. Que ninguém pode mudar isso e que não é algo a ser mudado. As pessoas precisam entender. Ela concordou, disse que viu dois homens se beijando na Cinelândia e achou normal, que as crianças têm que ter boa educação para lidar com isso. Concordei dizendo que ninguém aprende a ser gay. “Não, Fred?”. Não. Ela falou que “na área dela” dizem que a Globo ensina, que é culpa da Globo. Mudamos de assunto. Voltamos a falar das “cracudinhas” que, no meu Carnaval, costumo pagar R$ 10 por três, vendidas justamente pelas famílias que vêm em bando com seus isopores lá da “área dela” (e dizem que brasileiro não gosta de trabalhar).

Nesta semana, um jovem de 13 anos pegou a corda com a qual costumava pular, passou pelo pescoço e se jogou de uma laje que eu imagino quente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Era gay, tinha unhas grandes como as das artistas da TV, traços femininos, possivelmente sofria bullying (algumas pessoas traduzem como “besteira”) e carregava o peso nas costas de temer ser um desgosto para uma família – imagino, não os conheço. Família essa que carece até mesmo de asfalto para se locomover. Quando chove é um problema. Família como a da minha amiga, que precisa fazer os filhos se alistarem no exército para “ter uma chance de sucesso”: “Eu não tenho como pagar uma faculdade, né, Fred”. Ela não vai votar em ninguém, disse que todos são corruptos. Ao fim das roupas passadas, as roupas que eu uso, ela me perguntou o que acontece com as pessoas que se matam, porque, segundo a irmã – leitora fiel da bíblia – não há salvação. Eu não soube responder, mas que uma coisa é certa: nós, os vivos, possivelmente não vamos para um bom lugar, com ou sem as roupas que usamos.