Caminhada

Cruzo a esquina da Ouvidor com a Quitanda, um homem está deitado no chão, semimorto. Grita inaudível, sem voz, mas as veias grossas do pescoço ainda encontram força para saltar a carne inchada de álcool, suja; e são elas, as veias, que ilustram os gritos. Nada escuto. O corpo, deitado, tem a pele infértil dos homens entregues ao álcool — é como um terreno deserto, árido, onde os pelos não nascem mais, envenenados pela bebida que circula por elas, as veias. Ele baba, lacrimeja seco, sofre. A bermuda à altura dos joelhos revela seu sexo tornando-o ainda mais desgraçado, mais imundo, mais corpo morto, mais sem alma. Ele grita e olha para mim; não escuto nada.

A rua está deserta, o Centro do Rio de Janeiro, um dos meus lugares favoritos no mundo, está deserto, não há vida nas ruas; tampouco há sopro na vida maldita das esquinas, becos, cinemas e vielas. Nada resiste ao novo estado das coisas, nada existe como existiu há algum tempo — e antes disso. Nada haverá de existir, um dia. Eu sigo caminhando, o céu está azul, sinto-me muito vivo, no peito um desejo enorme de que as coisas voltem a ser o que eram, desconcertadas como eram, defeituosas, imperfeitas, mas nunca sufocantes, genocidas, pandêmicas. Não estou sozinho. Estou acompanhado por um homem bêbado, um homem-peixe que busca respirar dentro de um balde ou no fundo de um barco, bem ali, na rua do Ouvidor com a Quitanda, onde tantas coisas já existiram, onde eu tanto já existi, onde tudo hoje morre lentamente. Onde hoje sofre um homem.

É domingo, faz muito calor, a máscara intensifica o calor, começo a sentir meu próprio hálito. Caminho pelo Centro. Copacabana, Ipanema ou Leblon, para mim, nunca foram opções. Tampouco a Lagoa, cujas lembranças de quando eu fazia faculdade não me agradam. O Aterro tem ficado cheio, mesmo na melhor hora, por volta das 18h. É por isso que eu caminho pelo Centro, um dos lugares mais bonitos do Rio de Janeiro, onde hoje aglomeram-se muitos homens e mulheres e crianças e cães, nas calçadas, em cabanas de lona e pau. Onde hoje muitas pessoas tocam vidas moribundas, vidas mortas como a do homem que agoniza a poucos passos de mim. Eu olho para ele, ele retribui o olhar, não sofro. Sinto como se o sofrimento fosse lugar-comum e eu, como numa bolha, estivesse acostumado a todo o horror — mas imune a ele. Sinto-me privilegiado. É como se o horror nunca fosse horrível o suficiente.

Caminho de volta para casa. Tudo vai ficando mais higiênico, mais policiado, mais sofisticado, mais estado, mais iniciativa privada. Sinto que pertenço a tudo isso por um acaso, por uma roleta de Deus. Que besteira. Encontro uma amiga, ela passeia com um cachorro enorme preso à coleira. Um jovem gordo caminha com a máscara ao queixo; uma mulher muito linda pedala numa bicicleta alugada. Passo por um prédio com vidros espelhados e encaro meu reflexo aprumado; o porteiro abre o portão como se eu devesse entrar, como se eu combinasse com quem mora ali — ele olha para mim com o olhar da possibilidade. Não moro ali. Tiro uma foto da minha própria imagem, penso em postar, em mostrar para os outros. Posto. Sigo meu caminho, estou chegando em casa.

Entro no meu apartamento e vou direto para o chuveiro; escovo os dentes ainda dentro do box, como gosto de fazer, e sinto a água forte no meu rosto — sinto também um ligeiro gosto de água. É o Rio de Janeiro. Teria morrido sufocado o homem-peixe fora do aquário? Estaria ainda chorando o desespero? Ainda vivo? Morto? As notificações constantes do meu celular interrompem a música que toca enquanto me banho — certamente há comentários na foto postada. Alcanço a toalha e pego o celular. Um bocado de likes. Seco-me, deito na cama refrescado; meu corpo de homem-peixe no mar azul. Minha cama mar azul. Penso no homem bêbado, deitado no chão do Centro no Rio de Janeiro; não sofro.

É domingo, o dia está lindo, o mar imagino estar azul, talvez mais ainda do que minha cama, cheio de peixes. O calor, dentro do meu apartamento, não faz verão. Faz outono como lá fora também deveria fazer. Olho as notícias no celular, leio sobre a situação dramática do estado do Rio, sobre a fome e a miséria, sobre tudo o que é conhecido e hoje em dia está ainda maior, como um bichano desgovernado. Compartilho uma dessas notícias em um grupo de WhatsApp, digo aos meus amigos que, realmente, estamos fodidos. Estamos fodidos? As pessoas estão fodidas, não está fácil. Compartilho o cibersofrimento e todos ali, no grupo, sofrem um pouco. Mais notificações me interrompem no celular. São likes na foto espelhada. Dez, vinte, trinta, quarenta likes – sofreria ainda o homem sem alma? Não sofro.

Está realmente tudo muito fora do lugar.

Carta ao Leandro 20

Escrevo de um lugar onde você nunca esteve, de um tempo que você não chegou a ter — ainda incontrolável, porém. Não tem sido fácil. Ao passo que a política se mostra cada vez mais bruta, mais ainda do que quando você estava vivo, um vírus escroto confronta a ordem das coisas, arranca nosso centro. O todo está tão desconfigurado que nós não vemos saída senão o exercício de encontrar felicidade nas pequenas coisas. Dia desses me peguei feliz ao assistir a um vídeo do Caetano, de pijama, explicando a previsão furada do Celso Cunha, ainda nos anos 1980, de que o “r” retroflexo entraria em profunda decadência no Brasil. Ele arregala os olhos e chama o Moro, que agora é ex-ministro, de “ex-tudo”. Você se divertiria.

À medida em que a vida sinaliza um ciclo de desafios sem fim, o tempo, compadecido, se disfarça acelerado. Você morreu há um ano, parecem cinco. O Caetano parece cinco anos mais velho, as mãos tremem muito mais. O Thom Yorke está cinco anos mais velho, minha barba está cinco anos mais branca — não é brincadeira. Nem a voz do Ney Matogrosso passou incólume por esse ano-que-parece-cinco. É engraçado o que o tempo faz com as coisas. Ontem mesmo eu estava assistindo a uma entrevista do Cazuza com a Marília Gabriela, em 1988, e ele dizia que a consagração máxima de um artista é subir aos palcos do Canecão. O que o tempo faz com as coisas, Leandro?

Eu tenho tentado tocar mais violão, ainda muito rudimentar, porque você morreu e não há quem toque as músicas que eu gosto de cantar. Eu ainda me pego preso às lembranças da nossa adolescência — elas me assombram e fascinam a todo tempo, você sabe. Talvez algum dia eu consiga controlar essas sensações que ainda são muito físicas e me trazem um certo desconforto. Eu penso se um dia eu terei lembranças melhores do que as que nós construímos juntos. Deixo nas mãos do tempo, você sabe, tenho evitado pensar o longo prazo.

Eu não quero falar das dores. Eu tenho estado em paz, o trabalho tem consumido uma parte enorme do meu tempo, e diante de tanta maluquice no mundo — as pessoas participaram de festas juninas on-line, você acredita? — eu sigo grato por estar concentrado no meu próprio eixo. Sua partida desequilibrou tanto o estado normal das coisas que o caos coletivo da pandemia pareceu apenas o segundo capítulo de um momento difícil. Eu sinto como se estivesse mais preparado, a casca mais dura. Sinto a bem-vinda obrigação de estar bem comigo mesmo antes de estar bem com o mundo e isso é confortante. Também sempre fui muito bem resolvido com a tristeza e ela tem um papel essencial na minha vida; eu também sou triste.

Hoje faz um ano que você morreu, Leandro, e eu sinto muitas saudades. Eu estou me preparando, dentro da minha própria cabeça, para quando as lembranças que nós temos juntos começarem a ficar mais enevoadas, mais símbolo, mais fantasiosas. Esse momento vai chegar, aos poucos, e eu quero estar preparado para isso. Quero estar preparado para essa espécie de sonho, quando você estará cada vez mais distante, mas ainda iluminando a minha história como um farol que nunca apaga. A nossa história foi muito bonita e eu te prometo que a minha continuará sendo.

Meu amigo, sua partida me coloca na desconfortável esperança de que haja algo a mais depois da morte. Esse é um lugar religioso ao qual não pertenço, mas sua ausência me confronta com esse desejo. Torço para que um dia eu possa te dar um abraço carinhoso, como quando você gostava de pular e girar dizendo que estava com saudades. Quando eu também não for mais carne, espero que nossos espíritos possam se reencontrar. Por enquanto, ainda é dor. Logo mais, eu te prometo, será um sonho bom. Você faz uma tremenda falta.

Com muito amor,

Fred.

Seremos vencidos

O moleque desgarrou das pernas da mãe e veio cambaleando em minha direção, passos curtos e atrapalhados, apoiou as mãos pouco acima dos meus joelhos e lançou um sorriso banguela olhando para cima. Eu devolvi o sorriso num desengonço, cogitei lhe alisar a cabeça ou segurar um de seus braços gordos, mas o que pensaria a mãe diante da ética pandêmica do toque? A mulher acelerou o passo e buscou o filho, murmurou inaudível, constrangida.

O contato mais íntimo que tive com alguém, nos últimos dias, foi o encontro com um moleque desconhecido. Ele correu em minha direção e retomou o equilíbrio apoiado nas minhas pernas enquanto eu aguardava a vez na fila do supermercado. A mãe gritou seu nome, Davi, e buscou-lhe rapidamente. Eu sorri, ela puxou a criança pelo braço e tornou a atenção às pedras sanitárias numa das prateleiras da loja.

São 7h32 da manhã e o ponto alto da minha semana é a ida ao supermercado. Não há desespero, mas estou um pouco ansioso, um tanto frustrado. A privação das liberdades mais ordinárias pesa o pensamento, o corpo fadiga mais rapidamente numa simulação do exercício – ou como numa reação constante à falta dele. Eu estou concentrado, porém. Sinto a preocupação tomar espaço da libido. E é a libido que move o mundo, o meu mundo, o que eu leio ou ouço ou faço. O mundo está mais brocha, o mundo está parado – é grave.

Ando de volta para casa, desvio das velhas do Catete como faria diante do diabo. Sinto-me herói das velhas – um delírio – preocupo-me com sua saúde. A preocupação também circunda os anos fumados, a asma, minha mãe, a economia, a ignorância do presidente, o morador de rua, o cão que se alimenta dos restos do restaurante fechado, as garotas na esquina da Gomes Freire com a rua do Rezende. Penso o que Leandro, meu irmão morto, diria sobre isso tudo. Penso nesse texto, cada vez mais confuso, saindo dos trilhos.

Eu estou voltando para casa, ainda não são 8 horas da manhã, carrego comigo uma sacola com dois pães – desculpa para romper o confinamento. Estamos diante da impossibilidade, parados; a cabeça maquina coisas temerosas, todas entre vírgulas excessivas. Já no meu prédio, a vizinha à porta do elevador conta à amiga ter entrado na onda do skin care. Diz que durante a quarentena a pele tende a ficar mais bonita, mais fácil de tratar. Eu passo por elas e subo as escadas.

Ligo o chuveiro e penso se devo usar desodorante após o banho – faria sentido, morando sozinho, durante a quarentena? Demoro três músicas debaixo d’água: “Stupid Love”, da Lady Gaga; “How Soon is Now”, dos Smiths; e “It’s a Raid”, do Ozzy. É um banho demorado. Um banho quarentena. Pouquíssima libido, porém; muitas preocupações. A incerteza tira a gente do lugar.

É sábado e me incomodo cada vez mais com a fatalidade do vírus, assassino de alguns dos nossos pequenos prazeres. Leio um artigo na internet – ele diz que tudo vai passar, que venceremos, que sairemos mais unidos. Não acredito. Seremos vencidos e eu tenho certeza. Se não pelo vírus, seremos derrotados pela guerra, pelo consumo a qualquer custo, pela constante insatisfação sexual que rompe limites, pela impaciência ou desespero. Seremos vencidos por “poetas babosos”, pelo “câncer que-ninguém-descobre-a-causa”, por “legumes envenenados” ou pelo “sindicato policial do crime”. As aspas são de Roberto Piva, brilhante. Seremos vencidos, eu sei. Você sabe também. A vida não passa de uma experiência – e é justamente isso que a torna maravilhosa.

Um menino se equilibra enroscado nas minhas pernas. Não o conheço e tampouco ele conhece a mim. Correu em minha direção como se eu fosse um objeto de desejo, o pai, um picolé, um desenho animado. Acho graça, o moleque é fofo e eu sei ser fofo também. A mãe o afasta de mim. “Próximo”, grita a caixa do supermercado sob a máscara hospitalar. Pago pouco mais de dois reais por dois pães e tomo o caminho de volta para casa, para o confinamento, para a quarentena, para esse estado das coisas inédito que, infelizmente, vamos em breve naturalizar. Imagino as festividades anuais pré-quarentena, as pessoas estocando alimentos, transando com desconhecidos, “promoção de quarentena”, imprensa, 5 dicas para enfrentar a quarentena, lives, lives, lives. A vida é só uma experiência.

A memória

A menina alcançava os botões do elevador, um a um, contando em inglês. One, two, three… por sorte não os apertava, apenas passava o dedo por cada bolinha, como numa lição de casa prática. Foi até o ten já na ponta dos pés. Eu completei com eleven e twelve num tom didático, bem infantil; o prédio onde moro vai até o décimo segundo andar. A avó, ajeitando os cabelos no espelho ao fundo, olhou orgulhosa para o reflexo da neta que retribuiu repetindo: eleven… twelve – os dois últimos botões, ela não os alcançava. Dei-lhe nota dez aproveitando a carona num sorriso e abri a porta do elevador. Moro no quinto andar, elas subiam em direção ao sexto.

Antes de chegar ao meu apartamento, cumprimentei duas velhas que conversavam efusivamente em frente às escadas. Entre elas ficou acertado que o Catete já não é mais o mesmo, anda sujo e mal cuidado, motivo pelo qual já não gostam tanto de sair de suas cavernas. As velhas falavam alto, sem consciência do volume de suas próprias vozes – a do 503 é surda de um dos ouvidos. Eu rosqueava a chave no buraco da fechadura pensando na decadência do Catete, na decadência da coisa toda – talvez fosse apenas uma fase. O que será do Catete quando a menininha do elevador estiver diante de sua primeira entrevista de emprego em inglês?

Da minha infância, de quando aprendi inglês, lembro pouco. Eu construo minhas lembranças mais concretas a partir de uma foto em que eu apareço ao lado da Camila, minha primeira namorada, gordinho, vestindo uma camisa larguíssima do Ozzy Osbourne. Eu tinha 13 anos e daquela época guardo na memória dos dedos o riff de “Black Night”, do Deep Purple, que eu adorava tocar no baixo – minha mãe pagou por ele R$ 700 reais, eu ainda lembro. É engraçado como a roleta russa da memória joga com a gente; eu posso não lembrar o que comi há meia hora, mas algumas situações tão específicas de passados tão distantes às vezes tomam conta do pensamento. Situações tão pouco memoráveis. A memória, eu acredito, é o maior dos milagres.

Eu me lembro do Carlos, de quem não tenho notícias, me contar que “Am I Evil”, do Metallica, era a musica mais pesada do mundo, na quinta ou sexta série. Eu me lembro do Lucas simular o pênis com um tubo de ensaio, na aula de ciências, para zombar de um menino tímido da turma. Me lembro muito bem das veias saltando do pescoço da Tia Nadir, na segunda série, conforme ela brigava com a turma afirmando em alto e bom tom que Deus não castiga, Deus ama. Jamais vou esquecer do mau hálito do técnico que consertava meu computador quando ele ainda era um Windows 95. É engraçado lembrar de como eu me incomodava quando as camisetas do meu uniforme escolar começavam a ficar amareladas – lembro que as do Régis também ficavam, mas nele os tons amarelos caíam bem. Eu lembro de todas as minhas paixonites e da tristeza diante das impossibilidades. A memória é um milagre.

Meu grande amigo morreu na madrugada do dia 12 de julho de 2019. Dormiu e não acordou mais. Dele eu lembro muito bem, as lembranças são muito carinhosas – mas ainda igualmente dolorosas. Eu passo pelas velhas do quinto andar num estranhamento com a vida, uma espécie de incredulidade, é bizarro que elas ainda estejam vivas e meu amigo não. Tendo a aceitar as coisas, mas penso que ele deveria morrer em algum momento ainda muito distante, em alguma fração de tempo entre o sopro de vida das velhas e da menina do elevador. Não sei ao certo se antes ou depois de mim. Pouco importa.

Eu estou no elevador, subo ao quinto andar, me acompanham uma menina muito jovem praticando o inglês e uma mulher que acredito ser sua avó. Entre elas as coisas parecem dentro da normalidade, dentro da relação neta-avó, tudo dentro do que se pode prever. Quanto a mim, sinto as coisas mais inquietas, alvoroçadas, mas bem longe do escopo da ansiedade. Ansiedade é uma palavra perigosa. Eu acompanho a contagem da menina, andar por andar, e minha memória ativa o meu “um a dez” em hebraico seguido do meu “um a dez” em alemão. Vacilo ao tentar organizar o “um a dez” em espanhol, pois na minha cabeça ele mora na caixinha do achismo e não da memória.

Paro diante da porta do meu apartamento, enfio a chave no buraco da fechadura com um certo prazer, no turbilhão da cabeça a decadência do Catete, da coisa toda, um amigo morto, a exigência do uniforme branco e a beleza do que pode ser amarelo. O Catete, o Catete, o Catete. Organizar o pensamento tem sido uma tarefa e tanto, 2019 me parece um ano repleto de meandros e complexidades. Eu posso reclamar, mas não posso. Filosofo comigo mesmo pensando que na verdade o tempo não existe, tampouco um ano ou dois. São apenas palavras, que bobeira. Eu entro no meu apartamento.

One, two, three, four, five, six, seven, eight, nine, ten.

Achat, shtajim, shalosch, arba, 
chamesch, shesch, scheva, 
schmone, tescha, eser.

Eins, zwei, drei, vier, fünf, sechs, sieben, acht, neun, zehn.

Respiro. A gente precisa lembrar de tanta coisa.

Estamos em novembro de 2019, um ano repleto de meandros e complexidades. Eu subo ao quinto andar, a menina e a avó sobem ao sexto. Eu não sei até quando eu vou lembrar do que eu era, ou sou por enquanto. Eu sei que em cinco ou dez ou vinte anos a menina do elevador jamais lembrará da minha intromissão, em um elevador do Catete, ao tentar ensiná-la a ir além do dez em inglês. Quanto a mim, talvez jamais a esqueça, assim como eu jamais esquecerei do meu amigo morto, das camisas amareladas, da feiura do Carlos me mostrando as músicas do Metallica. Do Catete.

Eu rosqueio a chave, entro no meu apartamento, mas sinto como se ainda estivesse subindo no elevador.

A memória é o maior dos milagres.

Insônia

É como quando desembarcamos num aeroporto em outro país, e frente à esteira por onde giram as malas a ansiedade começa a se intensificar. Eu acordei assim nesta madrugada. Essa ansiedade, que não foge do controle, nasce do cansaço de horas em um voo econômico e da expectativa de boas férias. Parado ali, no aglomerado de gente de todo mundo no aguardo por suas malas largadas na esteira, muito distante da minha língua nativa, eu fico um pouco mais ansioso. A demora da mala escurece o pensamento, me imagino no hotel por um ou dois dias sem roupas limpas. Imagino a burocracia, a companhia aérea, pensar em inglês. É uma ansiedade controlada, porém. As pessoas, aliviadas, pedem licença uma a uma ao alcance de suas bagagens. Eu, olhando atento, parado ali, numa ansiedade que nasce com o cansaço. É meio assim que me senti ao acordar nesta madrugada. Não dormi mais.

Minha infância foi permeada por noites insones. Do meu quarto, eu assistia à programação do Shoptime madrugada adentro numa época em que o Ciro Bottini ainda sustentava pinta de galã e a Viviane Romanelli comandava com muito entusiasmo o meu programa favorito do canal: TV UD. Eu sonhava acordado com as fornadas de donuts e waffles feitas em máquinas modernas, coloridas, com o respingar da massa no percurso entre concha e chapa quente; as rosquinhas iam da bancada diretamente para o estômago da equipe técnica do programa. Achava graça como tudo aquilo era conduzido, tão informalmente, sempre num bate-papo com “o diretor” numa correria para vender vender vender antes que a próxima atração começasse – o consumo ainda dependia da TV. Azar o meu se o programa seguinte fosse o “Casa & Conforto”; lençóis e toalhas, ao menos naquele tempo, não me interessavam. A insônia ficava mais triste. No meu quarto não tinha TV a cabo.

As noites mal dormidas invadiram a minha pré-adolescência, quando eu passei a levantar da cama para me esparramar na poltrona da sala – eu já não tinha tanto medo de atravessar o corredor escuro. Lá havia a possibilidade da SKY, todos os filmes, Telecine, desenhos, documentários. Às tardes, eu costumava conferir a programação noturna dos canais para saber o que eu poderia assistir se porventura acordasse no meio da noite, era sempre involuntário. Foi numa dessas vezes que eu esbarrei com um dos filmes do italiano Pier Paolo Pasolini no Telecine Classic – a versão anterior do que agora é Cult. Eu tinha 12 ou 13 anos. “Salò ou os 120 dias de Sodoma” rachou meu peito em dois, eu nunca vou esquecer da sensação de atração e repulsa. Eu tinha 12 ou 13 anos.

Hoje eu acordei de madrugada e não consegui mais dormir, episódio raro visto que não sei o que é insônia há pelo menos 15 anos. Meu sono foi ficando cada vez mais profundo com o passar do tempo. Hoje, porém, foi diferente. Um pesadelo me despertou às duas da matina e não preguei o olho. Não tenho mais televisão no quarto e máquinas de waffle já não me interessam, estou satisfeito com meus poucos eletrodomésticos. Quanto à maldição de Pasolini, diluí ao longos dos anos entre personagens que vão de Gregório de Mattos a Marilyn Manson ou Glauco Mattoso a Luís Capucho. Ou Jean Genet ou Plínio Marcos ou Ozzy Osbourne. Acho que fiquei calejado – há coisas que marcam nossa vida para sempre.

Eu acordei às duas da manhã; uma insonia ligeiramente agoniada no gelo artificial do ar condicionado. Os mosquitos, recolhidos, talvez estivessem cavando novas frestas no apartamento para invadi-lo com tudo quando o verão começar. Eles, vocês sabem, não são bichos que voam por aí como tontos, sem rumo. Eles planejam tudo, os ataques, o inferno próximo ao ouvido, as manchinhas de sangue no lençol. Nesta madrugada, os imaginei sentados conspirando, dando uma trégua. Deixaram minha insônia em paz, decerto já haviam sacado que eu estava um pouco ansioso – o sangue dos ansiosos é pior, acredito. Eu, por alguns longos minutos, tentei pensar em coisas bonitas para retomar o sono, liguei o Spotify, música tranquila para adormecer. Uma viola light interrompida esporadicamente pela geladeira estalando macabra lá na cozinha. Não preguei o olho.

Decidi aceitar a insônia, pensei ser mais fácil aceitar os imprevistos da vida para que possamos lidar melhor com eles. Me coloquei no lugar de amigos que enfrentam dificuldades para dormir e desejei que estivessem dormindo tranquilamente, como se uma espécie de compensação universal equilibrasse o estado das coisas. Comecei a viajar no pensamento exatamente como estou viajando nesse texto. Deitado, ligeiramente ansioso, como se estivesse em pé frente à longa esteira de malas e fora da minha zona de conforto, lembrei de “Salò ou os 120 dias de Sodoma”. Desejei que mais pessoas tivessem visto esse filme, uma representação bem crua da didática perversa da união promíscua entre poder econômico, igreja, Justiça e nobreza – talvez essa tenha sido justamente a razão da minha ansiedade. As coisas estão turvas e parece que não temos conseguido ir além do que se vê. E com isso vem a ansiedade, em pé, bem na frente da esteira girando. Acho que vocês devem estar sentindo isso também.

E a esteira segue girando.

Pela janela

Do alto da minha janela, no quinto andar, eu vejo meu vizinho preparar um cigarro de maconha com muita delicadeza. Ele mora no prédio ao lado alguns andares abaixo de onde moro. A falta de cortinas dá um tom pouco privado à vida dele — um micro big brother visto que a cama encosta na parede logo abaixo da janela, como se ajoelhado no colchão ele pudesse dobrar os braços e descansar a cabeça no batente olhando para o mundo lá fora. Ou olhando para mim aqui no alto. Todas as noites meu vizinho senta de pernas cruzadas na cama, abre o que imagino ser um estojo e distribui a erva sobre o papel com muito cuidado. Enrola, aperta, enrola novamente, passa a ponta da língua e lacra o baseado com um pouco de saliva. Acende. Eu, aqui do alto, viajo com ele.

Enquanto a maconha queima o peito do meu vizinho, lá embaixo, eu olho pela janela sem a pretensão de querer desvendá-lo; passo o olho, alterno entre o céu por vezes estrelado, a mata, os prédios; penso que a janela é o que há de mais sagrado numa casa porque é através dela que a gente pode ver o mundo sem sentirmos culpa pelo cansaço, sem o esgotamento de tudo é pesado na vida. Quando eu estou na janela, o único peso em mim recai sobre os olhos do meu vizinho — certamente mais fechados a cada trago. Ele não se preocupa em soprar a fumaça pela janela, em vez disso liberta os pulmões numa neblina que toma conta do conjugado. Meu vizinho deita e olha para o alto exatamente como os apaixonados procuram formas em nuvens que desmancham com o vento. Eu sigo viajando com ele.

Não gosto de maconha, acho que a erva fumada traz a concentração de fora para dentro, torna o centro do usuário maior que o resto das coisas e o pensamento vulnerável. Tampouco gosto do cheiro, enjoativo, por isso imagino uma atmosfera densa a do apartamento do meu vizinho, o que me faz lembrar um trecho do excelente “Cinema Orly” (1999), de Luís Capucho, escrito num talento que transcende a minha confusão de ideias. Ele diz:

“Quanto à onda que provoca o baseado, trata-se dessas experiências que se perdem no rol das coisas que são óbvias demais, simples demais, comuns demais e são inenarráveis exatamente como narrar o que sentiram Adão e Eva após comerem a maçã ou narrar uma galinha que atravessa a rua. O baseado ilumina minha imaginação. Toda imagem é surpreendente e se eu não morro de medo, fico inchado de prazer. Com o baseado percebo que mais imagino do que penso ou que o meu pensamento, o meu raciocínio, é iluminado por imagens o tempo todo. Se o meu cérebro funcionasse apenas sob o efeito de um baseado eu seria uma fogueira que arderia mais rapidamente. Não consigo entender como alguns amigos conseguem ser maconheiros. Na verdade, mesmo com aquele prazer de quando fumado, não gosto de maconha, não gosto de estar sensível, de estar percebendo. Prefiro a minha cabeça limpa, a minha cabeça sem me surpreender com o seu colorido. Também fico religioso quando fumo. Desvendo equações místicas. E sinto-me preso, como se eu tivesse uma alma realmente atada, impossibilitado de sua leveza por conta da imobilidade e peso do meu próprio corpo. E não gosto disso. Não gosto de pensar religiosamente, acho perda de tempo. Por isso fumo maconha já meio bêbado, quando o meu pensamento fica menos rígido e quebra-se com facilidade para não se prender a nenhuma ideia, nenhum pensamento mais longo ou inconsistente. Com a maconha os sentidos parecem mais longos, mais largos e o tempo mais intenso.”

Meu vizinho toda noite acende um cigarro delicadamente recheado de maconha. Eu, de um alto que não é tão alto assim, olho para ele preso em sua atmosfera densa, focado em seu próprio centro, sendo o protagonista involuntário do meu alcance. O travesseiro parece menos resistente ao peso da cabeça concentrada, livre de preocupações externas como a minha também parece estar quando eu recorro à janela. Nunca o escutei tossir, tampouco ligar música muito alta. Nossa relação, muda pela distância, desprovida de contato visual, não tem espaço para densidades maiores que a da maconha que ele tanto fuma. Um dia, porém, enquanto ele se divertia com a fumaça, me peguei pensando em como a triste trajetória da erva, no Brasil, entre plantio e pulmão, poderia ser transformada em um caminho mais eficiente em direção ao aval do Estado para uma liberdade tão banal. Banal como meu vizinho, no Catete, um rapaz que fuma às noites antes de dormir. Mas, estando na janela, não me aprofundei nos pensamentos tristes do Brasil, por que é da janela que eu viajo com o céu por vezes estrelado, com os prédios ou meu vizinho. Não posso ser denso na janela, não quero.

Ontem à noite, o rapaz sentou na cama de pernas cruzadas e pôs-se a despedaçar a maconha-concreto que desce os morros no Rio de Janeiro, seca em lajes – diz-se até que banhada em mijo. Levou o baseado à boca e fumou deitado. Eu fui viajando pela janela, concentrado em tudo que não sou eu, ao contrário de meu vizinho – sempre focado em seu centro. Fomos juntos nessa onda muito doida que é a dele, muito parecida com a minha, cujo combustível não é a maconha e nem poderia ser porque não me interessa entrar ainda mais dentro de mim; eu preciso sair, virar o avesso, viajar no outro, nele e em mais um monte de gente. A neblina no quarto, lá embaixo, ficava mais densa. Eu o observei até que meu estômago desse sinal de vida – coisa que certamente aconteceria com ele dali a algum tempo. Ao voltar à janela, depois de jantar, vi que o rapaz já estava dormindo, sua privacidade escancarada e o quarto completamente iluminado. Não sei se ele teve tempo de guardar a ponta do baseado. Meu vizinho, às noites, como eu, parece estar muito cansado. Para lidar com isso tudo, nós, eu e ele, seguimos viajando.

Direções

Dica número um dos guias de viagem, especialmente os que versam países do norte, é de que o viajante deve permitir perder-se pelas ruas das cidades, deixar se envolver pelos encantos de tudo que é novo e diferente, bonito. Mas, mesmo de férias, a preocupação com as direções – sempre elas, se faz presente a todo instante. Logo nas férias.

Eu estive recentemente em Praga, na República Checa, e uma das minhas boas impressões da capital se deu pela facilidade com a qual é possível se localizar nas ruas, tanto na cidade histórica quanto na Praga renovada, mais moderna. O meu cérebro matemático, tão burro, exige de mim um esforço monumental para interpretar as direções dos mapas em função dos pontos turísticos, restaurantes, do caminho de volta para a hospedagem. Em Praga, tendo o rio Elba como referência, meu cérebro ficou um pouco mais relaxado, frouxo, e eu pude me preocupar menos com os caminhos percorridos. Eu andava pelas ruas traçando as linhas retas criadas pela minha mente, sempre com as referências que funcionavam melhor para mim. Eu imaginava meus amigos talentosos com números, como o Daniel, tirando de letra os caminhos da cidade, já sacando de todos os desvios e atalhos. Eu, pouco habilidoso com as noções de espaço, em vez de virar na quinta ou na segunda rua – não sei, tornava tudo visual. Para retornar ao apartamento da Alena, onde me hospedei, eu atravessava a mais feia das pontes, certo de que ela me levaria à rua que escolhi ser a principal por nela estarem cravados os trilhos do tram (ou bonde, ou VLT). Depois disso, eu tinha que entrar à esquerda na esquina do sex shop “Erotic City”, enorme, e andar até a pichação “abortion sucks”, quando eu deveria virar à direita. Ali eu estaria “em casa”. Eu pensava que Daniel, por exemplo, chegaria muito mais rapidamente com apenas uma olhadela no Google Maps. Eu tinha a noção que percorria caminhos por demais geométricos, quadrados como os resquícios da arquitetura comunista, eram poucas linhas tortuosas, mais espertas.

Eu estou escrevendo isso porque estou meio cansado. Nós voltamos de férias e temos que retomar as direções, não as que tratam do plano espacial, mas sim as que conduzem a vida para o que ela é – ou para o que ela precisa ser. E me parece cada vez mais difícil mudá-las, transformá-las em outras direções. Às vezes eu gostaria de seguir por direções opostas às que eu estou acostumado a seguir. É muito difícil perdê-las, transformá-las. No trabalho, em casa, nas redes sociais, as direções precisam corresponder às expectativas de tanta coisa, de tanta gente. Não tem sido fácil para mim e acredito que também não esteja sendo fácil para você.

Eu queria escrever mais, mas não sei escrever o que eu sinto, só o que eu vejo. Então vou terminar:

Ontem eu parei para comprar goiabas. Elas não estavam nos meus planos, mas no caminho em direção ao Largo do Machado, um carrinho de madeira cheio delas me saltou os olhos. Amareladas ou mais verdinhas, molhadas, refletiam o sol quente de outono. A água que as hidratava espirrava de uma garrafa de dois litros de refrigerante com a tampa perfurada, um regador improvisado cuspindo no compasso do apertar das mãos do vendedor. Cinco por dez reais, informou o rapaz, um desses moleques de pouca idade, magro e sem camisa, o celular viscoso de suor preso à barra da cueca aparente – uma ressignificação de Calvin Klein com um bocado de valor. O umbigo vazava como se não comportasse o pouco recheio do corpo.

O vermelho das entranhas das goiabas-vitrine já havia me conquistado, nem pestanejei. Eu pedi auxílio para escolhê-las, comeria todas em dois dias, informei ao rapaz, dispensando as mais verdes. Ele, de prontidão, ostentando óculos de lente azul – desses modernos que refletem o que se vê -, catava as bichanas, as apertava com delicadeza, iam diretamente do carrinho para uma sacola de plástico translúcido, das que não têm alça e ficam dispostas em rolos para a pesagem de frutas e legumes nos supermercados. Me incomodou imaginar o caminho até em casa segurando uma sacola sem alças, punho cerrado para carregar minhas goiabas. Elas valeriam o sacrifício.

No tempo em que movimentei o braço para tirar a carteira do bolso traseiro da bermuda, o rapaz olhou para minha cara e disse: “Tá triste? Fica triste não, doutor, alegria é a melhor coisa que existe”. Eu não soube o que responder. Os óculos dele me refletiam, penso que triste. Primeiramente imaginei culpar minhas sobrancelhas, desenhadas em ligeira queda desde que nasci. Depois me entendi triste. Um ontem triste. Eu agradeci ao vendedor e rumei ao meu apartamento, certo para onde eu queria ir, mas sem direções. Punho cerrado para carregar minhas goiabas.