O menino morde a língua para fora da boca, olhos quase cruzados convergindo para o sachê de ketchup que com tanto esforço ele tenta espremer a última gota. Ele faz força, muita força. Força como se não houvesse à sua disposição outros tantos sachês em cima da mesa onde apoia seu prato com uma coxinha. Cada gota de molho é preciosa — espreme com os cotovelos levantados paralelos ao chão. Eu olho curioso para o menino, ele está sozinho sentado à mesa de uma lanchonete na esquina da rua Paissandu com a Marquês de Abrantes; não deve ter 10 anos de idade. Tenho vontade de avisá-lo que tanto esforço é inútil, que basta pegar mais um ou dois ou três sachês disponíveis bem à sua frente. Que se esbaldar em ketchup é uma possibilidade real, sem esforços. Que ele pode escolher também a mostarda ou a maionese. Nada falo. Eu estou na fila do frango assado que dobra a esquina, aguardo a vez para pedir um frango fatiado sem farofa. Arroz e salada tenho em casa.
Estou na fila do frango, a mulher à minha frente conversa com uma senhora baixinha que neste momento está por decidir seus acompanhamentos — os acompanhamentos do frango. Legumes ou salada, batatas fritas ou batatas portuguesas, arroz branco ou tingido de brócolis. Olho para o homem de boné que corta os frangos com uma espécie de tesoura turbinada, me incomoda como seus dedos esbarram nos pedaços desmembrados do corpo de galinha morta. Percebo que o menino já não está mais sentado à mesa da lanchonete ao lado, imagino que tenha se dado por vencido e aberto ao menos um último sachê de ketchup antes de partir. Talvez seus esforços tenham valido a pena — uma última gota. Talvez eu devesse ter me aproximado para dizer que tanto esforço haveria de ser inútil diante de um mar (de ketchup) de possibilidades. Talvez eu desejasse, bem lá no fundo, que um desconhecido me parasse na rua, sem maiores pretensões, para me lembrar que às vezes algumas coisas não valem o esforço. Que a vida é nada menos que um mar de possibilidades. Eu não sei ao certo por que o menino lutava com o sachê de ketchup, tampouco sei por que eu, você, todos nós escolhemos enfrentar algumas lutas diárias. É preciso avaliar os esforços. Sei muito pouco.
Eu adorei esta crônica. Bastante reflexiva e profunda.